quinta-feira, 17 de junho de 2010

Artigo: Breves apontamentos sobre a atualização das regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento dos presos(1)

Havia muito impunha-se a atualização das chamadas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos (RMTR), que datam de 1955.
E eram óbvias as razões, das quais a primeira respeitava ao transcurso de largo tempo de sua vigência, durante a qual muitas das regras se tornaram anacrônicas, não apenas por força da superveniência de tecnologias valiosas à disciplina do objeto normativo, mas também pelos progressos experimentados nos múltiplos domínios de conhecimento abrangentes da complexa temática da questão penitenciária.
Por outro lado, assim como sucede noutras regiões, a observação de que tem sido de certo modo frustrante o propósito de adoção e aplicação práticas das regras, na América Latina e no Caribe, reforçava a ideia da necessidade de lhes encontrar a razão ou razões desse relativo fracasso, que bem poderiam situar-se na inadequação do teor normativo às dinâmicas realidades locais. Nesse quadro, a revisão poderia e pode contribuir para maior efetividade das regras, sobretudo as de natureza utilitária.
Percebeu-se ainda, em diagnóstico claro, que muitas das dificuldades opostas ao cumprimento das regras e do correto funcionamento do sistema carcerário se radicam nas vicissitudes históricas da relação de sua estreita dependência de outras agências de controle social, cuja atuação exige exame crítico e reorientação ao alcance de novas regras ditadas pela experiência.
Nesse sentido, convinha responder ao desafio de, no âmbito das competências de tais agentes, em especial do judiciário e das promotorias de justiça, incentivar recurso a mecanismos alternativos às sanções privativas de liberdade, sobretudo ao uso imoderado de prisões preventivas e provisórias, cujos excessos violam direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, além de tornar quase insolúvel o problema da crescente superlotação das unidades carcerárias.
Embora em contraste com as tendências regionais estudadas, cujas peculiaridades também inspiraram, criticamente, os trabalhos do Comitê, parecia consistente pensar-se, nesse contexto, como consectário da proposta central de redução dos encarceramentos, na alternativa política de limitação da chamada criminalização primária em favor da adoção de processos de descriminalização.
Para consecução desses objetivos, que transcendem o âmbito regional que lhe serviu de ponto de partida, o projeto de atualização incluiu regras de natureza garantista e regras de natureza utilitária, porque, enquanto as primeiras guardam vocação universal, como produto de certo consenso sobre o valor da dignidade da pessoa humana enquanto fundamento último das tarefas normativas, as segundas consideram, entre outros aspectos, as variáveis regionais compreendidas pelas diferenças específicas de cultura e de outros fatores próprios. Não seria preciso, neste ponto, relevar a circunstância de que são diversos os sistemas carcerários e os problemas de cada realidade em todas as partes do mundo.
Daí, de um lado, a imediata justificação da metodologia alvitrada no projeto, que pretendeu encontrar sínteses capazes de, em dados limites, refletir essa diversidade cultural. E, de outro, a explicação de, nessa tarefa, ter-se valido de inúmeros instrumentos que, em maior ou menor grau de amplitude geográfica, representam significativo acervo de experiências e conhecimentos sobre a temática, como, por exemplo, as Regras Penitenciárias Europeias, as Declarações de Arusha e de Kampala, a Carta (Africana) dos Direitos Fundamentais dos Presos e os Princípios e Boas Práticas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Por fim, convém salientar que toda a ideologia subjacente ao texto repousa num enfoque básico de cunho terapêutico, bastante perceptível às inúmeras referências ao uso, por exemplo, de meios curativos ou de educação moral, como expressões de uma perspectiva que, substituindo a da reabilitação, tende a atenuar os efeitos da privação de liberdade e a prover as pessoas presas da específica capacidade que lhes permita ulterior reinserção social. Tal orientação é coerente com a ênfase que o texto dá ao princípio de respeito da dignidade humana como valor fundamental da concepção e do funcionamento do sistema penitenciário.


Nota
(1) O Projeto de Revisão e Atualização foi apresentado no XII Congresso da ONU sobre Prevenção a Crimes e Justiça Criminal, realizado em Salvador, de 12 a 19 de abril pp., onde foi aprovado sem ressalvas nem objeções. Seu texto foi encaminhado à Secretaria-Geral da ONU para formação de comissão que deliberará sobre a possibilidade de adoção de uma Convenção sobre o tema.

Antonio Cezar Peluso

Presidente do Supremo Tribunal Federal. Presidente do Comitê da América Latina para Revisão e Atualização das Regras Mínimas da ONU sobre Tratamento de Presos.


PELLUSO, Antonio Cesar. Breves apontamentos sobre a atualização das regras mínimas nas Nações Unidas para o tratamento de presos. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 02-03, jun., 2010.

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