Um dos grandes desafios da sociedade atual é o abismo entre o cárcere e a vida extra muros. Esse abismo acaba corroborando para a desumanizarão dos detentos e permitindo o desrespeito aos seus direitos. Para tentar superar essa separação que cria um submundo prisional, os estudiosos da criminologia há tempos vêm sugerindo a criação de políticas/projetos que aumentem o diálogo entre cárcere e sociedade.
O programa TV CELA, surgido em 2009, é uma tentativa bem sucedida desse diálogo. O programa é gravado na Cadeia Pública Feminina de Votorantim (SP), que possui capacidade para 48 mulheres, mas abriga 150. O número já chegou a 240 em oito celas. Uma das lutas das presas é pela desativação da carceragem, por falta de condições mínimas.
As gravações ocorrem em uma espécie de gaiola, uma passagem para a área das celas. São quatro detentas que colaboram para sua produção. Iara, de 25 anos, é apresentadora. Camila, de 22, e Bianca, de 32, são produtoras, e Edicleusa, de 29 anos, é câmera do programa de TV.
"A intenção é usar os veículos de comunicação para levar às pessoas um entendimento maior do que é a carceragem e quebrar um pouco o estereótipo que se tem das pessoas que cumprem pena", aponta Werinton Kermes, coordenador do projeto.
Contudo, o conteúdo do programa não fica restrito ao mundo da detenção. As presas também abordam assuntos gerais que interessam à sociedade, como saúde, leis, trabalho e arte.
As reclusas já produziram sete programas de 30 minutos, da definição da pauta ao conteúdo. Cada programa tem um entrevistado, além de cenas do dia a dia das detentas de Votorantim, gravadas por elas mesmas. Entre os entrevistados, estiveram o prefeito de Votorantim, Carlos Pivetta (PT), os deputados estaduais Hamilton Pereira (PT) e Maria Lúcia Amary (PSDB), o delegado seccional de Sorocaba, José Augusto de Barros Pupin e o sociólogo Mario Miranda Junior, da Fundação Manoel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso (Funap).
Os programas estão sendo veiculados na TV Votarantim, TV Com Sorocaba e outras 40 tevês comunitárias do estado de São Paulo. A TV Justiça também vai retransmitir o programa.
"Eu fico com uma câmera aqui dentro 24 horas por dia. Filmo de manhã, à tarde, até à noite, quando trancam a gente", descreve Edicleusa, câmera do TV Cela, em entrevista ao programa de TV "Jogo de Cintura".
Edicleusa conta que andava sem rumo e atribui ao projeto um novo direcionamento à sua vida. "Eu andava quietona, sem um plano pro futuro... Hoje eu já penso que se eu sair daqui, eu vou continuar com o programa", prevê. "Foi importante esse projeto entrar na minha vida". Para Iara, "a visão que nós temos lá da rua, que eu tinha quando estava lá antes de estar nesse lugar, é que tem pessoas horríveis, sem estudo, que demonstram agressividade, mas não é nada disso", considera.
O delegado José Augusto de Barros Pupin, que acompanhou o projeto enquanto trabalhava em Votorantim, relata que o programa "com absoluta certeza mudou a motivação, o respeito das presas com os funcionários, porque alguém está dando importância às pessoas que estão no cárcere". "Elas eram ignoradas, subestimadas. Agora as pessoas demonstram que elas são importantes com esse programa", avalia.
Nas palavras de Pupin, o TV Cela chama atenção da sociedade de uma forma positiva. "Resgata a dignidade da pessoa humana", reflete.
O programa melhorou até mesmo a resposta dos órgãos públicos às solicitações das detentas. "O processo de transferência é mais rápido, para conseguir atendimento médico também. Há um esforço das pessoas que administram a cadeia para ajudá-las", menciona Luciana Lopez, jornalista que auxilia voluntariamente as detentas.
O TV Cela dá continuidade ao programa de rádio "Povo Marcado", também realizado por detentas e coordenado pela mesma equipe de voluntários. O programa foi ao ar em 2007 e 2008. Documentário sobre o programa foi exibido em 28 festivais de cinema pelo Brasil, foi base para uma tese de doutorado na Alemanha e conquistou três prêmios, um deles no festival de Gramado, em 2009, na categoria vídeo-social.
O programa de TV recebe apoio de uma equipe de profissionais de comunicação voluntários, do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), que realiza a edição dos programas.
"A inclusão social das companheiras detentas nos motivou a apostar no projeto. A integração, a inclusão, refletem nossa visão de sindicato cidadão", explica Ademilson Terto da Silva, presidente dos Metalúrgicos de Sorocaba.
Fontes: Rede Brasil Atual e Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário