quarta-feira, 23 de junho de 2010

Artigo: Passado e futuro: a tortura anistiada

Dia 26 de junho é o Dia Mundial Contra Tortura e a tortura continua sendo um mal permanente na sociedade brasileira. Nos jornais ainda estão presentes notícias de pessoas sendo seviciadas pelas forças policiais, que em um Estado democrático de Direito deveriam zelar pela defesa dos direitos humanos. O caso do motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos, torturado até a morte por um grupo de 12 policiais militares por causa do furto de uma bicicleta, ocorrido em 9 abril na Zona Norte, demonstra que os agentes do Estado continuam a utilizar a força arbitrariamente, sob a capa protetora da tolerância e da impunidade.
Não é de admirar que casos como de Eduardo continuem a acontecer, visto o resultado do julgamento da ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), no dia 29 de abril, em que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votaram pela manutenção da interpretação de que a Lei de Anistia abrange também os torturadores que cometeram crimes de lesa humanidade durante a ditadura militar, mais uma vez trazendo à cena a tradição do Judiciário brasileiro em tolerar a tortura praticada por agentes do Estado.
Essa tolerância foi evidenciada pela pesquisa "O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de crime de tortura na cidade de São Paulo", em que analisei 51 processos de crimes de tortura, de 2000 a fevereiro 2004, das Varas Criminais da Comarca de São Paulo, julgados até 2008 em primeira instância. A partir da sistematização desse material foi possível analisar as tendências presentes nos julgamentos desse tipo de crime.
Importante destacar que a Lei 9.455/97, que tipifica o crime de tortura no Brasil, considera que qualquer pessoa pode ser responsabilizada por este crime. A lei brasileira difere da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes(1), que especifica que a tortura é todo ato praticado por agentes do Estado, restringindo a penalidade apenas para esses agentes. A lei brasileira, sendo de tipo aberta, como se apontará no decorrer do estudo, pode servir para punir tanto os agentes do Estado como os não agentes. Desse modo, o levantamento apresentou tanto casos envolvendo agentes do Estado como casos envolvendo não agentes como agressores, desse modo foi possível comparar as tendências da justiça criminal e o tratamento diferencial da conduta praticada por um e por outro agente.
De acordo com a análise, o total de réus denunciados nesses 51 processos correspondeu a 203, sendo que 181 deles eram agentes do Estado (policiais militares e civis, agentes penitenciários ou monitores de unidade de internação), 12 correspondiam a denúncias contra civis (não agentes do Estado) e 10 denunciados eram pessoas presas acusadas de terem torturado outros presos.
Quando analisamos o desfecho processual de cada um dos réus, temos que dentre os 181 agentes do Estado acusados por crime de tortura, 127 foram absolvidos, 33 foram condenados por crime de tortura e 21 foram condenados por outro crime (lesão corporal ou maus-tratos). Dentre os 12 civis acusados, três foram absolvidos, seis foram condenados por crime de tortura e três foram condenados por outro tipo penal, ou seja, metade dos casos resultou em condenação dos acusados. Ou seja, a Lei 9.455/97 tem sido utilizada mais para condenar pessoas comuns do que para punir agentes do Estado.
Quando analisamos qualitativamente os processos, percebemos que existe uma nítida diferença entre os julgamentos dos casos em que figuram como réus pessoas comuns daqueles em que os acusados são agentes do Estado. Nos primeiros casos, o foco do julgamento é o agressor, a sua fala é colocada em questionamento a todo o momento. Nos casos de violência doméstica, por exemplo, em que uma criança foi vítima de alguma agressão praticada pela mãe, pai, padrasto ou madrasta, o julgamento gira em torno dos papéis desempenhados por esses atores: se eram bons pais, boas mães, se tratavam bem as crianças etc. Em contrapartida, nos casos envolvendo agentes do Estado, o foco do julgamento não é o agressor, mas a vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade. A sua fala é frequentemente contraposta à de seu agressor, que sempre afirma ser inocente das acusações. Nota-se nítida desvantagem da vítima em relação ao seu agressor. A condição da vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita de crime, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda a credibilidade, principalmente por ser ele um agente do Estado, um agente que visa a "proteger a lei e a ordem" e cujos atos são considerados parte de sua atividade profissional. Não são raras expressões tais como: "a vítima ostenta vasta lista de antecedentes criminais, o que demonstra que sua personalidade é voltada para a prática reiterada de crimes contra o patrimônio e contra a vida". Em alguns casos, alega-se que a força praticada pelas forças policiais teria sido "excessiva" mas necessária, passando a ideia de que a violência pode ser usada, especialmente contra determinados segmentos sociais considerados "suspeitos", mesmo que abusivamente. Quando existem evidências claras de que a vítima efetivamente sofreu a tortura, constatadas em laudos médicos, a autoria das lesões é colocada em dúvida, já que "a vítima pode ter se autolesionado".
A impunidade dos crimes de tortura praticados por agentes do Estado tem sido apontada como um dos principais fatores responsáveis pela continuidade dessa prática nas forças policiais.
Mas, para além da impunidade presente nos casos de hoje, a impunidade com relação aos torturadores que atuaram durante a ditadura militar se faz presente ainda hoje e, com certeza, influencia para a permanência desse crime de lesa-humanidade abominável. Desse modo, não é de se estranhar que, justamente durante a vigência do Estado democrático de Direito, a tortura ainda persista e os torturadores permaneçam impunes. De acordo com o estudo de Kathryn Sikkink (2004)(2) os países da América Latina que passaram por ditaduras militares, mas que julgaram e responsabilizaram os acusados por crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas apresentam atualmente uma democracia que respeita os direitos humanos. A pesquisa de Sikkink indica que a impunidade incentiva mais violações de direitos humanos.
Quando falamos em impunidade não estamos nos referimos apenas a punição dos agressores, pois isto restringiria os casos ao mero discurso de “lei e ordem”, mas especialmente da necessidade do reconhecimento do conflito, da atribuição de responsabilidades, do reconhecimento de que determinadas pessoas foram vítimas de tortura.
Eduardo, motoboy vitimado recentemente pela tortura praticada por policiais militares, era jovem e negro, assim como a maioria das vítimas da tortura praticada pelos agentes do Estado. Quantos Eduardos ainda serão sacrificados e seviciados pelas mãos daqueles que deveriam zelar pela dignidade e pela segurança da população baseada no respeito aos direitos humanos?
Enquanto não assumirmos a necessidade de julgarmos e reconhecermos os crimes cometidos no passado pelo Estado, pouco avançaremos no combate à tortura.


Notas
(1) A Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes das Nações Unidas foi aprovada no Brasil por meio do Decreto Legislativo 4, de 23 de maio de 1989 e promulgada pelo Decreto Presidencial 40, de 15 de fevereiro de 1991. Assim, a convenção faz parte do aparato legislativo brasileiro.

(2) SIKKINK, Kathryn. Mixed Signals: U.S. Human Rights Policy and Latin America. Ithaca: Cornell University Press, 2004.

Maria Gorete Marques de Jesus
Mestre em Sociologia pela USP; Especialista em Direitos Humanos pela USP; Membro do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; Associada à Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-graduação.

JESUS, Maria Gorete Marques de. Passado e futuro: a tortura anistiada. In Boletim IBCCRIM. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 11-12, jun., 2010.

 

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