O juiz, as pressões, o prumo
O art. 2.º da Constituição da República adota o sistema de repartição do exercício do Poder Público em três ramos, um deles o do Judiciário, e seu art. 95 estabelece garantias e proibições, com o fito de assegurar ao Juiz equanimidade e prudência no exercício da atividade jurisdicional, ao abrigo de pressões espúrias.
A sociedade espera, o cidadão, o modesto jurisdicionado confia que o Juiz atenda ao singelo e essencial anseio de avaliação serena, independente e meticulosa das causas que lhe sejam submetidas. Nada mais que isso, essencialmente, se pretende do Juiz.
Apenas para a finalidade acima indicada instituiu-se o quadro distinto de agentes do Poder Público, que compõem o Poder Judiciário.
Quando o Juiz sucumbe e não realiza esse objetivo – de estudo aturado, sereno e imparcial do litígio – qualquer que seja o teor da decisão, está ele a ofender mortalmente, no coração, sua própria essência, a renegar sua razão de ser, tornando-se peso morto no corpo social, imagem de um malogro.
Porque, para examinar a causa e emitir a decisão, sem aquelas qualidades – não havia o Juiz de ter sido ressaltado, pelo constituinte original, do quadro comum dos agentes do Estado e posto em situação privilegiada, em vestes talares e ao resguardo de influências perturbadoras.
As pressões que se exercem sobre o Juiz, todavia, quando lhe é submetido um litígio, muitas vezes assumem – além da intrínseca tensão própria de qualquer pendência judicial – feições as mais várias, quer sejam as internas, de sua própria personalidade (como a insegurança íntima, que às vezes se traduz em vanglória, em sobranceria, em prepotência ) – quer sejam as externas, isto é, as econômicas, sociais, dos meios de comunicação, políticas, corporativas.
A todas deve o Juiz repelir – sob o escudo das prerrogativas constitucionais que envolvem seu cargo e pela consciência da missão insigne – mantendo-se em posição plácida e imune, acima até mesmo da condição emocional em que se situam as pessoas comuns.
Posição essa de superior imunidade, que no imemorial e confortante julgamento dos povos assinala a imagem do Juiz fidedigno. Entre o Juiz e o jurisdicionado, um vínculo como que pessoal, estreita relação de confiança – não a ingênua visão de sacralidade – mas o sentimento cordial de humana solidariedade, beirando a familiaridade: "Ainda há juízes em Berlim".
A moderação e a prudência hão de ser, no Juiz, não aleatória característica pessoal, mas requisito para o exercício da função.
A moderação e a prudência hão de ser, no Juiz, não aleatória característica pessoal, mas requisito para o exercício da função.
Felizmente, às pressões mencionadas acima têm os Juízes brasileiros resistido com êxito, assim sobrevivendo a referida concepção popular de confiança, esporádicas as notícias de esmorecimento.
Contudo, ultimamente se vêm agigantando no horizonte as nuvens negras de uma pressão demoníaca, com mostras de atingir e vulnerar ainda os Juízes mais briosos e resistentes: o "excesso de serviço" e seu consequente necessário, a "ligeireza" no julgar.
A precipitação, a falta de detença em cada um dos pormenores da causa, a leitura do processo "pela rama", enfim, é desvio que frustra a legítima expectativa do jurisdicionado e quase sempre leva a mau resultado.
Em virtude dessa pressão diabólica, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, pela pena de um de seus mais admiráveis expoentes, chegou a editar este conceito acachapante – conceito que tem percorrido o território nacional de ponta a ponta, arrasador:
"O julgador não está obrigado a responder a todos os questionamentos formulados pelas partes, competindo-lhe, apenas, indicar a fundamentação adequada ao deslinde da controvérsia, observadas as peculiaridades do caso concreto" (EDcl no RMS 17732/MT, Quinta Turma, Min. Rel. Gilson Dipp, DJ 19.09.2005, p. 353).
Substitui-se a voz do jurisdicionado, o fundamento de seu pedido, como autor ou como réu – por hermética lucubração do Juiz, surdo e imperial, rompendo-se a necessária interlocução direta e pessoal entre o Juiz e o jurisdicionado: "excesso de serviço".
A angústia do excesso de serviço não pode, jamais, desembocar em prejuízo do equilíbrio processual e dos direitos do jurisdicionado(1)!
Verdadeiramente, afastados todos os possíveis subterfúgios, não debruçar-se o Juiz, ele próprio (vejam-se os intransponíveis limites estabelecidos no art. 93, XIV, da Constituição), serena e pacientemente, sobre "todos os questionamentos formulados pelas partes", constitui o píncaro da denegação de jurisdição, insólita fratura na vital interlocução que anima o trinômio processual, isto é, a relação dialética que deve subsistir até a síntese do encerramento da causa(2).
Muito pelo contrário, o excesso de serviço não é tema que deva ocupar o Juiz, situa-se além de seu círculo de ação – como as intempéries ou qualquer outro fato da natureza. É questão, isto sim, relativa aos demais ramos do Poder Público, aos quais o Juiz (conservando-se rigorosamente aprumado em seu específico e restrito âmbito de atribuições) deve encaminhá-la, para a solução possível.
Que se reclame "a quem de direito"!
Décadas atrás, comentários percorriam as comarcas do interior de São Paulo de que o modelar Desembargador Geraldo Roberto de Souza, sempre seguro no agir, insistia em que o excesso de serviço não era questão da sua alçada, que assumira apenas o compromisso atinente ao cargo de Juiz, cujas elevadas atribuições bem procurava desempenhar, as atribuições da exata prestação jurisdicional.
Poucos anos antes, outro memorável magistrado paulista, o Desembargador Manoel Tomaz Carvalhal, dotado das virtudes sublinhadas, orientava os iniciantes na carreira da judicatura: "o processo aberto sobre a sua mesa há de ser examinado como se fosse o único". Em outra ocasião:"dos autos leio até os carimbos".
Encerraram ambos suas carreiras a merecer o reconhecimento espontâneo dos jurisdicionados, como agentes do Estado que se houveram sempre como verdadeiros Juízes. Não perderam o prumo. Se o Juiz, porém, desastradamente, sucumbir e, em postura exorbitante, assumir como seu o enfrentamento da contingência do excesso de serviço, procurando resolvê-la com suas próprias forças – logo se verá encalacrado e abatido em seu intuito, prestes a demitir de si a toga que deve distingui-lo.
Primeiro, porque suas forças têm humano limite, que se tem revelado menor, muito menor, que a carga de trabalho que lhe vem sendo imposta.
Segundo, porque se o Juiz recorrer a subterfúgios complementares e impróprios, a escamoteações, como a transferência a terceiros, sem os predicamentos da magistratura, de encargos seus, personalíssimos, institucionais, em desacato à referida barreira constitucional (barreira além da qual o ato jurisdicional apresenta-se ilegítimo, imprestável, vazio da sempre decantada "credibilidade", tudo em consequência de defeito de paternidade) – se o Juiz assim fizer, repita-se, frustrará a realização de seu objetivo medular, como que evadindo-se de cena e tornando a prestação jurisdicional distante e tênue, desacreditada, sem a garantia de autenticidade de lavra, despida de validade ético-jurídico (Ministro Celso de Mello, RT 832/505) – quer dizer, arremedo de prestação jurisdicional.
O excesso de serviço de que se cuida, insista-se, é eventualidade da esfera governamental, para ser discutida na Academia e enfrentada mediante providências de natureza político-administrativa, nas áreas mais altas do Legislativo, do Executivo e, conforme os arts. 93 e 96 da Constituição, nas próprias cúpulas do Judiciário no exercício anômalo de atividade judicial ou judiciária(3), nunca, porém, um problema referente ao órgão responsável pela prestação jurisdicional propriamente, isto é, ao Juiz.
Sem dúvida, no entanto, serão benfazejos movimentos de resistência e de protesto, das associações profissionais de magistrados: "Lutar onde é fácil ceder"(4).
O excesso de serviço é questão que, situando-se fora das atribuições institucionais do Juiz, pode todavia desnorteá-lo e, o mais grave – muito mais grave – pode prejudicar de maneira importante a concretização de sua finalidade precípua: o exame isento, detido e meticuloso da causa – hipótese esta que hoje, infelizmente, se tem verificado com frequência preocupante.
Seja frisado aqui, como já se fez(5), que, especialmente no segmento criminal, o exame minucioso da prova, pelo próprio Juiz, é de relevância ímpar, porque é precisamente desse labor pessoal que deverá brotar sua íntima convicção, condenatória ou absolutória(6).
Conclusão: ao contrário do enunciado no acórdão do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que ora se critica, está o Juiz obrigado, por dever essencial do ofício livremente assumido, a responder a cada um dos argumentos apresentados pelas partes, fundamentando porque os acolhe ou rejeita.
Não perder o prumo!
Notas
(1) "A lei penal e a lei processual penal existem não para assegurar ao Estado o direito de punir mas para assegurar ao acusado o direito de não ser punido, a menos que o comportamento a ele imputado se ajuste, capilarmente, a uma definição normativa de ilícito penal e que esse comportamento venha a ser cumpridamente demonstrado, por intermédio de provas incontestes, e sempre com a mais rigorosa observância do due process of law. Jamais por convicção íntima, por mais plausível que possa ela ser, de vez que as garantias que a lei penal e a lei processual penal outorgam ao acusado constituem direito desse mesmo acusado, e não um favor do príncipe, que possa ser posto de lado em nome dessa convicção íntima. Tudo isso, certamente, não é mero culto a formalismo estéril." (Desembargador Paulo Costa Manso – Revista de Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 1/156, EI 487.525 – in Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 1005, p. 105).
(2) "Como sujeito imparcial do processo, investido de autoridade para dirimir a lide, o juiz se coloca super et inter partes. Investido da função jurisdicional, não pode o juiz eximir-se de atuar no processo, desde que tenha sido adequadamente provocado; com efeito, no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o non liquet diante de uma causa incômoda ou complexa, pois, estabelecido o monopólio estatal da jurisdição, tal conduta importaria em evidente denegação de justiça" (Teoria Geral do Processo. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco. 3. ed. São Paulo: RT, 1981, p. 263).
(3) José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. RJ/SP: Forense, 1961, p. 183.
(4) Sonho Impossível. J. Darion e M. Leigh – versão de Chico Buarque e Ruy Guerra.
(5) Boletim IBCCRIM – SP – ano 16 – n. 196 – jan. 2009.
(6) "A legitimidade da decisão exige ainda correta e adequada apreensão dos fatos transpostos ao processo através da atividade probatória. Cabe ao magistrado justificar por que considerou mais relevantes determinados elementos da prova e desprezou outros" (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho. As Nulidades no Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 170).
(2) "Como sujeito imparcial do processo, investido de autoridade para dirimir a lide, o juiz se coloca super et inter partes. Investido da função jurisdicional, não pode o juiz eximir-se de atuar no processo, desde que tenha sido adequadamente provocado; com efeito, no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o non liquet diante de uma causa incômoda ou complexa, pois, estabelecido o monopólio estatal da jurisdição, tal conduta importaria em evidente denegação de justiça" (Teoria Geral do Processo. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco. 3. ed. São Paulo: RT, 1981, p. 263).
(3) José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. RJ/SP: Forense, 1961, p. 183.
(4) Sonho Impossível. J. Darion e M. Leigh – versão de Chico Buarque e Ruy Guerra.
(5) Boletim IBCCRIM – SP – ano 16 – n. 196 – jan. 2009.
(6) "A legitimidade da decisão exige ainda correta e adequada apreensão dos fatos transpostos ao processo através da atividade probatória. Cabe ao magistrado justificar por que considerou mais relevantes determinados elementos da prova e desprezou outros" (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho. As Nulidades no Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 170).
José Roberto Antonini
Advogado e Procurador de Justiça (SP) aposentado.
Advogado e Procurador de Justiça (SP) aposentado.
ANTONINI, José Roberto. Justiça apressada: o juiz, as pressões, o prumo. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 14/15, jun., 2010.
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