domingo, 20 de junho de 2010

Artigo: Sonhando com o "fim do tráfico" de entorpecentes

"O interrogatório é muito fácil de fazer / pega o favelado e dá porrada até doer
O interrogatório é muito fácil de acabar / pega o bandido e dá porrada até matar
[...]
Bandido favelado / não se varre com vassoura
Se varre com granada / com fuzil, metralhadora".


Esse é um trecho da letra da cantilena que soldados do BOPE, pelotão de elite do Rio de Janeiro, gritavam aos brados, enquanto faziam seus exercícios matinais num bairro nobre da cidade, segundo reportagem de O Globo, de 24.09.2003 (apud MENEGAT, 2005, p. 56).

O objetivo deste pequeno e singelo artigo não é discutir a grave questão do tráfico e de tudo o que o envolve, pois eu certamente não teria nada a acrescentar ao que sobejamente já se sabe sobre o assunto e já se tem sido discutido. A letra acima transcrita deixa muito claro, conforme dizMenegat (2005), que o grande inimigo foi localizado na favela e identificado com o favelado. Esse processo de localização e identificação, obviamente, não é construído pela cantilena do BOPE, mas simplesmente é expresso por ela. A localização e identificação do inimigo, ou, noutros termos, a construção e demonização do grande e temibilíssimo inimigo, que é o traficante, é resultado de um processo histórico, social muito complexo, no qual a mídia tem um papel reconhecidamente relevante(1).

No entanto, quando se diz que o inimigo foi construído, não se quer dizer que o inimigo existe unicamente em nosso imaginário. Ele começou a existir no imaginário inclusive daqueles nos quais ele foi construído e identificado. A guerra se instalou. Com a guerra real, o inimigo instalou-se na história e existe em todas as partes conflitantes, ainda que com discursos diferentes, com valores e ideologias diferentes, com métodos diferentes de violência. E cada um acreditando piamente na justificativa e legitimidade de seus métodos.

Levanto aqui uma pergunta bastante simples e até ingênua: será que esta guerra terá fim um dia? Para que uma guerra tenha um fim, três hipóteses simplificadamente se apresentam: a) o inimigo "A" vence e extingue ou neutraliza o inimigo "B"; b) o "B" vence e extingue ou neutraliza o "A"; c) "A" e "B" chegam a um acordo e passam a conviver "pacificamente". Colocadas nesses termos as hipóteses de solução da guerra ao tráfico, quero acreditar que essa guerra dificilmente cessará. É difícil imaginar que os traficantes venham a ser extintos ou neutralizados pela força dos que os combatem, assim como é difícil imaginar que os combatentes do tráfico venham a ser extintos ou neutralizados pela força do tráfico. Da mesma forma, não dá para se entender como ambos os segmentos venham a fazer um acordo, pois, a persistir, definitoriamente, a categoria do traficante, ela já supõe, em sua própria definição, uma relação de confronto.

Ademais, vale lembrar que definir essa guerra como um combate entre dois segmentos, o dos que praticam o tráfico e o dos que o combatem, é induvidosamente uma forma muito simplista e reducionista de compreendê-la. É do comum conhecimento de todos a contínua e cruenta guerra que se pratica entre os próprios traficantes, na qual morrem muitas e muitas pessoas, embora isto seja até motivo de discretas comemoraçõespor parte dos ditos combatentes. Porém, a situação é muito mais complexa, já que, do lado defendido pelos (ingênuos) combatentes, existem muitos que, embora explicitamente estimulem o combate e a guerra, na verdade se alimentam dessa guerra, necessitam dela e sobrevivem graças a ela. O mesmo talvez se deva dizer em relação a muitos dos que estão do lado do tráfico. Portanto, trata-se de uma guerra, na qual muitos dos componentes das partes conflitantes se intercomunicam espuriamente entre si (se é que, a esta altura, se possa falar em algo que não seja espúrio), enquanto os demais lutam heróica, inglória e ingenuamente. Diante dessa situação, arriscar-me-ia a dizer: é uma guerra com "soluções" contínuas e espúrias e, por isso mesmo, é uma guerra sem fim.
Nesta guerra, além das inúmeras mortes, do terrível e imbatível vírus da corrupção, do terrível crime organizado (categoria sabidamente bastante criticada, por sinal, enquanto conceito), gasta-se muito dinheiro, muita energia, ocupam-se milhares de profissionais (honesta e heroicamente empenhados na prevenção e no combate ao tráfico, em suas mais diferentes funções) e, em decorrência das prisões de traficantes, ocupam-se muitas vagas no sistema carcerário brasileiro. Segundo estatística do DEPEN(2), os condenados por tráfico constituem 22% da população carcerária brasileira, porcentagem essa superada unicamente pela proporção de crimes contra a propriedade, que seria de 52%. De se frisar ainda que muitos dos crimes contra propriedade estão associados ao tráfico, além de muitos crimes de homicídio. Mais um lembrete importante: as facções criminosas alimentam-se do tráfico.

O que se fazer então com essa guerra, continuamente "solucionada" de forma espúria, mas que nunca encontra um fim? E nem poderá encontrar um fim, pois ele significaria o fim das soluções espúrias.

Às vezes eu, ingenuamente, chego a me perguntar: e se, no lugar de se pretender acabar com a guerra, se acabasse com a categoria de traficante? Falando em termos mais técnicos, e se se descriminalizasse o tráfico? Tenho plena consciência de que não se trata de nenhuma proposta arrojadamente nova, pois algumas autoridades e pensadores já a fizeram e dela já se tem amplo conhecimento. Quando uso a palavra "ingenuamente", tenho a intenção, nada ingênua, de não me comprometer muito com minhas reflexões, já que não sou nenhum expert nessa complexa questão de descriminalização do comércio de entorpecentes. Sou psicólogo, professor de Criminologia, em sua vertente clínica, militei muito tempo na área da psicologia criminal, não sou nada versado em questões de Sociologia e pouco versado em Política Criminal. Mas arrisco-me a pensar em algumas consequências ou decorrências possíveis (não necessárias) da descriminalização do comércio de entorpecentes(3).

Entre as negativas, há que se pensar na possibilidade de haver um pico no consumo. Isso seria mais do que natural. Experiências, ainda que parciais, em outros países, como na Holanda, que o digam. Provavelmente (não tenho conhecimento de fatos, de pesquisa), esse pico talvez se deva, entre outras coisas, à sensação de que, sendo livre o comércio, e, consequentemente, totalmente livre o uso, a droga não seria algo tão nocivo assim como se pensa. Aliás, quando se fala em descriminalização do comércio de entorpecente, não se pretende, em absoluto,minimizar os efeitos da droga, que continuam e sempre continuarão sendo profundamente prejudiciais à saúde do usuário, às suas relações sociais e familiares, à sua vida profissional, escolar, numa palavra, continuam e sempre continuarão sendo terrivelmente mortíferos. Porém, uma verdade deve ser dita, ainda que com uma dose de "ingenuidade" (já que sem base em conhecimentos científicos): quem quiser de fato usar a droga, vai conseguir obtê-la, às vezes mais, às vezes menos facilmente. Quem quiser vender sua droga, vai conseguir vendê-la, às vezes mais, às vezes menos facilmente. Não é a guerra que vai impedir os traficantes de vender, e nem os usuários de obter sua droga.

Além do possível pico no uso, é possível que houvesse um desarranjo total de forças, sobretudo das forças interessadas no combate, trate-se de interesses (ingênuos) de defesa da ordem social (combate às drogas), trate-se de interesses espúrios (envolvidos com a ilegalidade do comércio das drogas). Muitos (ingenuamente) se veriam como que esvaziados em sua nobre função de defesa da ordem social, outros se veriam desprovidos das estratégias e instrumentos até então utilizadas, impunemente e com sucesso, para obtenção do dinheiro fácil (seja praticando o comércio ilícito e, portanto, muito mais restrito e muito mais lucrativo, seja usufruindo indiretamente desse comércio, seja acobertando-o). Não há como se prever as consequências de todo esse desarranjo de forças que, até então empenhadas na guerra, talvez se direcionassem de forma ensandecida não se sabe contra o que e nem contra quem. Chego a pensar então que o tráfico e a guerra contra ele estabelecem um estado de equilíbrio, como o equilíbrio precaríssimo de calibragem de um pneu que, tendo sido perfurado por um prego, se mantém ilusoriamente cheio enquanto não se retira o prego. O tráfico, para a política, para o sistema punitivo, para a sociedade, exerce papel análogo ao que o prego exerce para o pneu que por ele se encontra perfurado.

E quais seriam as possíveis (não necessárias) consequências positivas da descriminalização do comércio de entorpecentes e, consequentemente, do fim do tráfico? Meio que ingenuamente, ando pensando em algumas.

A primeira consequência seria o fim da guerra. Toda a guerra no morro(4)se desmantelaria. Não teria mais sentido. Os "soldados" ficariam sem serviço. Do lado da sociedade assim dita dos "honestos", os soldados teriam que se direcionar a outros campos, que talvez não fossem mais de "guerra", mas de segurança e de prevenção, propriamente, em prejuízo talvez de sua auto-estima. Do lado do morro, os "soldados" teriam que se dedicar ao tal comércio de entorpecentes, agora totalmente legal, e, portanto, sujeito e outras normas e regras, a outros tipos de concorrência, às leis e força do marketing (não necessariamente da publicidade, que certamente seria ilegal, tal como o é no caso do cigarro) e a outras formas de organização empresarial. (Talvez outras "guerras" se criassem, por certo mais circunstanciais, em função do supra-aludido desarranjo de forças). Em função do fim dessa interminável guerra, certamente muitos e muitos homicídios seriam evitados e muitas e muitas vidas seriam poupadas. Ainda, com o fim dessa interminável guerra, os líderes do morro ficariam destronados, realmente desarmados e despidos de poder. Se eles não soubessem encontrar seu espaço de atuação dentro das novas "regras" do comércio, não se sabe bem qual seria sua reação, sendo este um dos aspectos realmente inquietantes. Destronados os líderes, o espaço ficaria mais livre para a atuação mais segura de outras lideranças, inclusive das lideranças formais por parte do Estado.

É provável que grande parte do chamado "crime organizado" também se desmantelasse. Juntamente com ele, muitas formas de corrupção, de apoio e de compromissos espúrios não teriam mais razão de ser. Por falar em "crime organizado", e sem querer identificar as chamadas facções criminosas com o crime organizado, é da gente se perguntar, ainda que com certa dose de ingenuidade: com o "fim do tráfico", quais seriam as consequências para as tais facções? Será que elas perderiam um de seus braços mais fortes? Será que elas se enfraqueceriam? Será que elas perderiam uma grande fonte de renda? Estas são questões que os sociólogos, penso eu, estão mais preparados para responder.

Continuando o sonho com o "fim do tráfico", faz sentido supor que grande maioria dos profissionais que integram o sistema punitivo (polícia, justiça, sistema prisional) teria grande parte de seu tempo liberado para outras funções. Ou, com o tempo, é possível que houvesse uma redução significativa desse contingente. A levar em conta a estatística da população carcerária brasileira acima informada, as vagas no sistema prisional poderiam ser reduzidas em torno de 22%. Enfim, com tudo isso, muito e muito dinheiro, ou melhor, uma grande fortuna de dinheiro seria poupada.

Concluindo este meu ingênuo sonho, eu acrescentaria: se nosso País fosse politicamente sério, toda essa fortuna poderia ser direcionada para aassistência à saúde dos fumantes e de todos os usuários de drogas em geral. Que maravilha!

Que maravilha! Mas... o texto acabou, o sonho acabou... e a gente deve voltar à realidade. O tráfico continua, a guerra continua, o crime organizado continua, as mortes continuam, a corrupção continua, grande parte do tempo dos profissionais honestos continua sendo tomada por conta disso tudo, o sistema prisional continua cada vez mais inchado, uma imensa fortuna continua sendo gasta, com um resultado simplesmente pífio, e... os usuários continuam à mercê de seu vício, sem assistência digna e eficiente por parte do Estado, porque o dinheiro está sendo gasto com o interminável combate ao tráfico.

Referências Bibliográficas

MENEGAT, Marildo. Quem decidiu esta guerra em que todos morremos? In: MENEGAT, Marildo NERI, Regina (Org.). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, pág. 55-64.
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais. 11(42), janeiro-março de 2003: pág. 242-263.
BATISTA, Vera MDifíceis ganhos fáceisdrogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2ª. edição. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.
NATALINO, Marco Antônio Carvalho NatalinoO discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle puntivo. IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo: Método, 2007. (Monografias /IBCCRIM, n. 43).

Notas

(1) Sobre o papel da mídia no "inquérito", na busca, na identificação e construção do inimigo, bem como sobre esse processo social de criação do inimigo, vd. MENEGAT (2005), BATISTA, N. (2003), BATISTA, V. M. (2003),NATALINO (2007).
(2) Vd. site da Defensoria Pública do E. do Pará – www.pa.gov.br, publicação datada de 05/04/2010, acesso em 11/05/2010. Fonte: Consultor Jurídico.
(3) Não seria possível descriminalizar o tráfico, pois a palavra tráfico, de si, já implica um comércio ilegal. Tornando-se legal, ele não seria mais tráfico.
(4) Quanto falo "morro", é evidente que estou usando uma expressão em parte simbólica, pois sabidamente não é somente no morro que se pratica o tráfico.


Alvino Augusto de Sá, 
Professor de Criminologia (Clínica) da Faculdade de Direito da USP.


SÁ, Alvino Augusto de. Sonhando com o “fim do tráfico” de entorpecentes. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 04-06, jun., 2010.

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