A possibilidade de instauração de persecução penal fundamentada em delação anônima sempre foi tema controverso, no entanto recente decisão liminar do Pretório excelso sobre a matéria começou a esclarecer a questão no sentido de i) vedar a persecutio criminis com base exclusivamente em delação anônima; mas permitir ii) que a peça apócrifa autorize investigação informal para verificar sua autenticidade(1).
Cabe, pois, analisar o posicionamento da Suprema Corte à luz da Constituição e do ordenamento jurídico pátrio que impõem limites à investigação e à atuação dos agentes estatais – principalmente na esfera criminal -, como forma de manter a tranquilidade social e possibilitar ao próprio Estado apurar eventuais abusos cometidos por seus membros.
1. Vedação da delação anônima
Analisando a legitimidade das denúncias apócrifas sob a óptica constitucional, salta à vista a vedação ao anonimato (art. 5º, inciso IV) que, aliada à motivação das decisões judiciais (artigo 93, IX) e à publicidade dos atos processuais (art. 5º, inciso LX), legitima a atuação do próprio Estado e garante à sociedade a fiscalização e controle das ações estatais.
Ausentes essas garantias, não há nem que se falar em persecução penal, pois, como já enfaticamente asseverado no Supremo, “peca este processo pelo nascimento, em si, no que decorreu – repito – de um ato a ser excomungado, ou seja, de uma ‘denúncia’ anônima”(2).
Em ato de normatização interna, aliás, o próprio STF vedou críticas e denúncias anônimas no seu serviço de ouvidoria (artigo 5º, II, da Resolução STF nº 361/2008) e julgou inconstitucional(3) expressão do art. 55, § 1º, da Lei 8.443/92, que viabilizava “o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia” formulada no Tribunal de Contas da União”.
Impossível, diz a Suprema Corte, iniciar-se um procedimento criminal baseado exclusivamente em peça apócrifa.
2. Investigação policial preliminar
Aquela mesma decisão monocrática sobre a validade das denúncias anônimas, contudo, e como logo no início já se indicou, não se limita ao que se discutiu até aqui e, ao arrepio das garantias entabuladas no texto constitucional, permite ao Poder Público adotar medidas informais destinadas à apuração da denúncia anônima.
É isso mesmo: veda-se a investigação formal – e a segurança jurídica que dela naturalmente decorre –, mas possibilita-se a atuação informal dos agentes públicos, com a finalidade de promover posteriormente a formal instauração da persecutio criminis e, ao mesmo tempo, manter completa desvinculação entre o procedimento e a denúncia anônima.
Com a devida venia, discorda-se desse entendimento. Causa espanto a legitimação de uma investigação informal a ser efetivada pelo Poder Público sem qualquer lastro, sem qualquer prazo, sem qualquer garantia aos cidadãos.
2.I. Limites da atuação dos agentes policiais: impossibilidade de autorregulação do Estado
Em primeiro lugar, sabe-se que é função do Estado a autorregulação dos seus membros, de modo a garantir à sociedade, pela publicidade dos atos e pela observância à legalidade estrita, “a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça”(4), bem como evitar excessos e arbitrariedades de procedimentos sem previsão legal.
Nessa esteira, Luis Jiménez de Asúa, ao dissertar sobre o poder de punir do estado, ensinava que “El Derecho penal subjetivo no es ilimitado, pues el Estado, en el ejercicio del poder de castigar, tiene que limitarse a sí mesmo, fijando el supuesto y el contenido de su actuación”(5).
Com todo o acerto, o ministro Celso de Mello – que admitiu a investigação preliminar – afirmou, no julgamento do HC n.º 73.271, que “...a unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar garantias jurídicas que assistem ao indiciado (...). O indiciado é sujeito de direitos e garantias legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial”.
Pois bem, como garantir que a investigação informal seja levada a efeito com prudência e discrição – como desejado por todos - se não se sabe ao menos quais atos podem ser realizados nessa fase? Pergunta-se: Pode ser ouvido o suspeito? Caso possa, é garantida a presença do defensor? Podem-se requisitar documentos ou dados? Talvez fazer campana em frente a determinado endereço? E tirar fotos e fazer filmagens?
Mas não é só isso. Agrava-se a situação na hipótese da suspeita não se confirmar e, por essa razão, os atos preliminares deixarem de ser revestidos de formalidade. Nesses casos, será impossível garantir que as diligências sejam realizadas com observância à dignidade da pessoa humana e à formalidade exigida em lei, pois o Poder Judiciário nunca terá a oportunidade de analisar o que foi feito.
2.II. Limites da investigação: inexistência de prazo, abrangência territorial e atribuição de competência
Outrossim, além da falta de controle na atuação dos policiais, os limites da investigação como um todo são colocados em risco. O fato é que ninguém pode ser investigado ad aeternum, por prazo indeterminado e por meios desconhecidos. Se o inquérito policial formalmente instaurado tem o prazo legal definido em lei para evitar o constrangimento ilegal da duração desarrazoada das investigações, é nítido que não pode ser considerada legal a investigação informal, baseada em denúncia anônima, sem prazo estabelecido.
Advertem Gustavo Badaró e Aury Lopes Jr. que o direito ao processo penal no prazo razoável está “calcado no respeito à dignidade do acusado, no interesse probatório, no interesse coletivo no correto funcionamento das instituições e na própria confiança na capacidade da justiça...”(6).
De mais a mais, não é só a limitação temporal que põe em risco a credibilidade desse meio investigativo. Não há aqui qualquer garantia de observância ao limite espacial – onde podem investigar? - e subjetivo – qualquer policial possui atribuição independente da conduta delatada? E a competência?(7). E se o alvo for detentor de prerrogativa de foro?
Admitindo-se a investigação informal, admitir-se-ia que todos os cidadãos são potenciais alvos de investigação policial indeterminada, sem qualquer baliza que limite o poder estatal. Com fundamento em uma denúncia anônima, um indivíduo passaria a ter o desavisado acompanhamento diário de policiais – abandonem a intimidade – que atuarão sem qualquer controle legal.
2.III. Impotência no combate ao crime: não há como averiguar abuso de autoridade ou autoria de falsa delação
Por outro lado, não é apenas a violação de direitos individuais que emerge como consequência da inexistência de controle da atuação dos policiais e dos limites da investigação, mas também a institucionalização da impunidade, seja dos policiais, seja dos delatores.
Como se sabe, caracteriza-se abuso de autoridade “ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais”(8). Sendo assim, ou rasga-se a lei e se admite a investigação informal, ou extingue-se de uma vez por todas esse meio espúrio de apuração dos fatos.
Na informalidade não há a menor possibilidade de reprimir eventual abuso de poder, verificar a licitude das provas colhidas ou o respeito à dignidade do investigado. Não há funcionário responsável pelas diligências, nem mesmo obrigatoriedade de documentá-las ou encaminhá-las à autoridade judicial, sequer há numeração que vincule o que foi feito.
Caso seja trilhado o caminho apontado pelo STF ninguém será punido, nem o autor da delação por eventual denunciação caluniosa (art. 339 do CP) ou falsa informação de crime (art. 340 do CP), nem os agentes públicos por abuso de autoridade. Pune-se apenas o malfadado cidadão que sem saber por que viu-se na condição de investigado.
2.IV. Ultima ratio do Direito Penal
Além dos pontos acima discutidos, destaca-se a insensatez de conceber que a denúncia apócrifa, incapaz de originar processo administrativo no âmbito do Poder Judiciário (Resolução STF nº 361/2008), e também do Tribunal de Contas da União (Lei n.º 8.443/92), possa surtir efeito na esfera criminal!!
O âmbito penal é a ponta da lança do direito, a extremidade que agride o cidadão de modo mais agudo, causando-lhe enorme constrangimento e, por isso, é a ultima ratio. Se assim é, inconcebível que cubra de legalidade o anonimato vedado constitucionalmente para o início da persecução penal, quando inadmissível nos demais ramos do direito.
Caso adotado o entendimento que vem aos poucos se difundindo nas cortes pátrias, seríamos obrigados a aceitar a seguinte e absurda situação: eventual denúncia anônima de corrupção contra um funcionário do Poder Judiciário, quando feita na polícia, após investigação informal, poderia dar início a uma ação penal, mas, quando feita na ouvidoria do Judiciário, seria rejeitada liminarmente, justamente por ser anônima.
Óbvio ululante que se são inconstitucionais a denúncia anônima e as ações dela derivadas nos procedimentos administrativos, com mais razão, também o são nos procedimentos criminais.
3. Conclusão
Por todo o exposto, não há que se cogitar a instauração da persecutio criminis nas hipóteses de peças apócrifas e, com mais razão, deve-se repudiar investigações informais – sem previsão legal – que nada mais fazem do que causar alarde, temor e insegurança aos cidadãos.
(1) HC 100.042/ RO, decisão liminar proferida pelo min. Celso de Mello.
(2) Min. Marco Aurélio, quando do julgamento do Inquérito 1.957/PR.
(3) MS 24.405/DF, Tribunal Pleno, rel. min. Carlos Velloso, DJ. 23.04.2004.
(4) FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 72
(5) Tratado de Derecho Penal. Tomo I. Buenos Aires: Losada, 1950. p. 54.
(6) Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 14.
(7) Abuso de autoridade, artigo 4º, alínea “h”, da Lei 4.898/65: “o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal”
(8) Art. 4º, alínea “a”, primeira parte, da Lei 4.898/65.
Rafael Serra Oliveira
Especializando em Direito Penal Econômico pela FGV-SP,
Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Advogado criminalista em São Paulo.
Especializando em Direito Penal Econômico pela FGV-SP,
Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Advogado criminalista em São Paulo.
Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010
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