A vítima permaneceu nos sistemas penais sempre esquecida. Apenas na década de 1940 é que se iniciou efetivamente uma atenção para a chamada “vitimologia”, mas no Brasil esta visão ainda demorou bastante. Nas faculdades de Ciências Jurídicas estuda-se o processo penal como se fosse a luta do Ministério Público/Estado (o grande mal) em desfavor do réu/defesa (o bem). No ensino jurídico clássico não existe “vítima”, esta é algo invisível. É como estudar medicina e se esquecer do paciente, ou seja, focar apenas na doença.
Recentemente, foi publicada a Lei 11.690/08 a qual alterou o artigo 201 do CPP e criou alguns direitos para a vítima. No entanto, isto foi uma luta muito grande, pois esta Lei se originou do Projeto de Lei 4.205/01, o qual foi enviado pelo Ministério da Justiça ao Legislativo e não tratava do artigo 201 do CPP, ou seja, não se preocupava com as vítimas. Porém, após muito trabalho social e voluntário foi possível manter, em 2006, contato com a Dra. Damares, então assessora do deputado João Campos (PSDB-GO), e Delegado de Polícia. Ambos ficaram sensibilizados com a lacuna legislativa. Como o deputado ocupava a presidência da sub-comissão que coordenava os trabalhos, foi possível incluir uma Emenda que assegura, em tese, alguns direitos à vítima.
No CPP, a vítima ainda tem o nome de “ofendido”. Na verdade, o texto legal ainda é insuficiente. Pois, o parágrafo 5º fala que o Juiz, “se entender necessário”, poderá encaminhar a vítima para serviços de saúde, psico-social ou assistência jurídica. Porém, esta é uma visão ainda judicializada, pois a maioria dos crimes não vira processos judiciais, por exemplo por falta de autoria conhecida, logo o juiz não terá contato com a vítima do crime. Outrossim, o texto legal não inclui os familiares da vítima.
Ademais, embora assegurado o direito em lei, ainda não se consegue efetivar o mesmo, pois órgãos públicos iniciam um jogo de “empurra-empurra” dizendo que a atribuição é do outro. Em tese, os crimes acontecem no município, mas este alega que a atribuição é do estado. O SUS não tem programas específicos para este atendimento, exceto na violência contra a mulher e mesmo assim não funciona bem. Em algumas cidades existem NAVV (Núcleos de Atendimento às Vítimas de Violência), mas muito poucas cidades têm este serviço e funcionam sem recursos materiais e financeiros suficientes.
O Sistema Provita (Proteção de Vítimas Ameaçadas) previsto em lei desde 1999 também deixa muito a desejar.
Estudos indicam que uma vítima de crime violento leva, no mínimo, oito anos para se recuperar do trauma. Ou seja, é uma “pena” bem maior que a do criminoso. Isto sem falar se a vítima foi assassinada, pois é uma “pena” perpétua e os familiares da vítima nada recebem se este não era inscrito no INSS. Ao contrário disso, a Constituição prevê auxílio reclusão para a família do criminoso, se inscrito no INSS. A rigor, o criminoso tem previsão constitucional, mas a vítima de crime não está prevista na Constituição.
Em mais um capítulo na luta pela defesa da vítima do crime observou-se que os Tribunais colocavam os nomes das vítimas, por completo, nos documentos e até nas certidões. Ou seja, todo mundo deveria saber que “Maria Xavier” foi estuprada. O absurdo chegou ao ponto de que em alguns locais o nome do réu era omitido, mas o da vítima não. Dessa forma, foi elaborado um pedido ao CNJ para se evitar este absurdo, o qual foi negado. Mas, após trocar a composição do mesmo o pedido foi renovado e citando as Resoluções da ONU, o pleito foi deferido para que se use apenas as iniciais das vítimas nos documentos. Muitos reclamam disso, pois alegam que dificulta o acompanhamento. Isto é, querem punir e investigar a vítima e não o réu.
Há crimes com vítimas determinadas (estupro) e vítimas indeterminadas (tráfico de drogas e crimes mais difusos), por exemplo. Também é importante ressaltar que temos vítimas indiretas (familiares, amigos e similares), bem como a vítima direta (a agredida diretamente). Recentemente a Defensoria teve como atribuição legal a defesa das vítimas. Mas, este papel duplo é extremamente complexo, pois defender vítima e réu ao mesmo tempo, é algo difícil de se entender. Isto vem acontecendo nos crimes de violência doméstica, e fica mais confuso nas Comarcas em que há apenas um defensor público. Lado outro, em tese, somente pode atuar o Defensor por representação processual (necessidade de um mandato, ainda que verbal do cliente) e restrita ao caso das vítimas determinadas.
A rigor, o ideal é que o atendimento jurídico às vítimas seja feito pela iniciativa privada por representação processual e apenas complementarmente o Ministério Público possa atuar, como substituto processual, principalmente em casos de vítima indeterminada. Neste caso, importante que seja criado um Fundo de Defesa das Vítimas e a verba recebida, neste caso, iria para o mesmo, se não fosse possível identificar a vítima e seus familiares. Ou seja, seria ajuizada uma Ação Civil Pública para coibir os danos decorrentes da atividade ilícita e a verba iria para o Fundo.
O Ministério Público tem sido muito tímido na defesa dos interesses das vítimas. Afinal, para esta tanto faz se a pena foi de 6 anos e três meses ou apenas 5 anos. Em regra, querem é uma punição e em geral ficarão inconformadas com as penas aplicadas, mas são as previstas na Lei, ou seja, no Brasil as penas tendem a ficar próximas do mínimo legal. No entanto, as vítimas também querem atendimento de apoio (financeiro, social, psicológico e de saúde) e isto tem faltado bastante. A titularidade da pena não é apenas protocolar denúncias criminais, mas também é assegurar o cumprimento da pena aplicada, desenvolver meios para se prevenir outros delitos, bem como mecanismos para amenizar a dor da vítima e seus familiares. Afinal, o fenômeno do crime é mais amplo, inclusive na concepção moderna não existe crime sem vítima (determinada ou indeterminada), sendo que nos crimes de perigo busca-se proteger a sociedade.
Muitas das vezes apenas se lembram das vítimas para culpar as mesmas como no momento da fixação da pena (art. 59 do CP). Ou então, para ameaçar a vítima de prisão em audiência se não se lembrar dos fatos.
Outra parte também punida no sistema penal é a Testemunha, a qual é ouvida várias vezes e gasta um tempo enorme para questões que já estão no processo judicial. Mas, existe no Brasil uma cultura penal de se ouvir testemunha até para confirmar laudo que constatou que a Terra gira. A Testemunha é ouvida no BO, depois no APF (auto de prisão) e talvez no curso do IP (inquérito Policial) e na tal de “defesa preliminar” reinventada em 2008 e certamente no curso da instrução efetiva. Se for processo do júri será ouvida no plenário. Isto não acaba, pois pode ser reouvida se o processo for anulado ou se prevalecer a última moda penal que é uma tal de “audiência de justificação” para se reiniciar a instrução depois do fim do processo. No Brasil, processo penal é quase que eterno. Enfim, a Testemunha é que é punida ao ser ouvida várias vezes para dizer coisas que já estão no processo, principalmente hoje em que existe muita prova fotográfica ou filmada. Há casos de se ouvir Testemunhas para dizer se fulano quando “criança pequena em Barbacena” era boazinha ou malvada... Estas questões lotam as pautas das Varas e Delegacias desnecessariamente e as Testemunhas perdem dias de trabalho, o que é grave se são trabalhadores autônomos.
O CNJ tem feito um bom trabalho na defesa dos presidiários. Mas, acho que precisamos também estabelecer políticas de defesa e atendimento às vítimas, pois muitas também precisam ser reintegradas à sociedade.
Porém, no tocante às vítimas o Judiciário não vem cumprindo as inovações da Lei 11690-08 como as relativas ao direito da vítima de ser informada sobre os atos processuais pessoalmente.
O Novo CPP, em discussão, assegura à vítima nos arts. 10, 20, 24, 25 e 87 a 89 uma participação tanto na fase policial como judicial, isto é um avanço. Embora saibamos que entre prever a lei e cumprir a lei há uma distäncia enorme e muita luta. Nesse sentido precisamos criar um Fundo para Atendimento às Vítimas (inclusive indeterminadas), pois hoje toda a verba vai prioritariamente para o Fundo Penitenciário para atender apenas aos criminosos.
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2010
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