quarta-feira, 28 de abril de 2010

Artigo: O projeto de lei do código de processo penal: a escolha de um novo horizonte?

Já se disse em algum lugar que a melhor forma de se conhecer a vocação política de uma nação – se democrática ou autocrática – é desvendando sua legislação criminal. E essa afirmação tem uma razão de ser. Pelo menos na modernidade ocidental, todas as modificações políticas que proporcionaram a instalação de um modelo centralizado e autoritário de exercício do poder foram acompanhadas de um recrudescimento da legislação penal e processual penal. A tolerância, o respeito às diferenças e ao pluralismo cultural e a compreen­são de que a delinquência é um fenômeno de múltiplas causas, para cujo controle a resposta penal é a menos eficaz, constituem um pressuposto da verdadeira Democracia. No Brasil, temos um Código de Processo Penal quase septuagenário, de inspiração fascista e perfil inquisitorial, que serviu de base para a formação de gerações de juristas. Há muito se anseia por uma mudança crítica, reformadora, que venha romper paradigmas. E essa transformação tornou-se imperiosa com o novo quadro constitucional inaugurado em 1988. Algumas tentativas foram feitas, todas inexitosas. Surge, agora, uma nova oportunidade.
O Projeto de Lei do Senado n. 156, de 2009, que pretende instituir um novo Código de Processo Penal, tramita pelo Congresso Nacional há cerca de um ano e é motivo de um intenso debate parlamentar. O anteprojeto elaborado pela Comissão Externa de Juristas presidida pelo ministro Hamilton Carvalhido, e que inspirou o PLS n. 156, contempla um texto valioso em muitos aspectos. Prevê inovações significativas, como a consagração expressa do sistema acusatório; a restrição à publicidade dos atos do inquérito policial a fim de se preservarem a intimidade e a vida privada da vítima, testemunhas e investigado, que não poderão ser submetidas à exposição pelos meios de comunicação; a qualificação dos elementos colhidos na investigação policial como meras “fontes de prova”, e não como provas em si; a impossibilidade de o juiz formar seu convencimento com base em qualquer elemento colhido na etapa policial e que não tenha sido submetido ao contraditório na instrução criminal; a extinção da citação por hora certa; a possibilidade de julgamento em favor da defesa mesmo quando configurada nulidade processual; a vedação de qualquer iniciativa do juiz nas hipóteses de mutatio libelli etc. Há problemas, por certo, como: aplicação de pena consensual para determinados crimes(1), possibilidade de condução coercitiva do réu para reconhecimento pessoal e de prolação de sentença condenatória mesmo nos casos em que há pedido de absolvição do acusador etc. Mas esse é o momento para os ajustes, que devem ser buscados na amplitude do debate parlamentar. O parecer da Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código de Processo Penal (Parecer Final 2.630/2009), que foi presidida pelo senador Renato Casagrande, caminhou bem em alguns pontos, nem tanto em outros. É preocupante a pretensão de preservar o afastamento dos institutos despenalizadores próprios do Juizado Especial Criminal, especialmente a conciliação civil e o sursis processual, do âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como manter a possibilidade de decretação de prisão preventiva ex officio pelo juiz nos casos de descumprimento de medidas protetivas de urgência(2). A chamada violência de gênero, disciplinada também no seu aspecto penal pela Lei Maria da Penha, não pode servir de pretexto para a descaracterização do sistema acusatório, como se as peculiaridades desse tipo de delinquência justificassem uma rotulação de gênero, uma etiquetagem do acusado, fundada em presunções de periculosidade.
Diga-se o mesmo do emprego de expressões genéricas para orientar a imposição de medidas cautelares restritivas de liberdade, como “comportamento gravemente censurável do réu”, inserida no inciso III do art. 548 do PLS, e lá mantida pelo parecer final da Comissão Temporária de Estudo da Reforma do CPP. O uso de termos com sentido aberto sempre representa um risco em matéria processual penal. Não é sem motivo que a população carcerária brasileira é composta essencialmente por presos provisórios, cujas custódias foram decretadas, em sua esmagadora maioria, para a garantia da ordem pública, fundamento de cautelaridade que vem sendo questionado, com argumentos sólidos, por respeitável corrente de processualistas penais, e que lamentavelmente persiste na redação do PLS. Ademais disso, e ainda no âmbito da prisão provisória, o projeto contém incoerências em relação a sua inspiração acusatória. Ao mesmo tempo em que adotam expressamente o modelo acusatório (art. 4º), admitem, tanto o texto original do PLS n. 156 quanto o do substitutivo apresentado pela Comissão Temporária (Emenda n. 1 – CTRCPP), a iniciativa do juiz para a imposição de custódia cautelar no curso do processo (art. 523 e parágrafo único). Em outras palavras, muito embora tenha o projeto se empenhado em evitar conferir poder geral de cautela ao juiz criminal (art. 524), elencando expressamente as medidas cautelares pessoais restritivas de liberdade e não restritivas de liberdade, bem como as reais, deixou espaço para a decretação dessas providências ex officio pelo magistrado após o oferecimento da denúncia, como se fosse encargo deste zelar pela qualidade da prova da imputação – que, frise-se, não pode ser produzida por sua iniciativa – sem requerimento de quem acusa. A situação prevista, em resumo, é a seguinte: o juiz não pode trazer a prova para o processo por conta própria, pois isso violaria o sistema acusatório – esta vedação é acertada e já vem tarde – mas pode tomar a iniciativa de decretar a prisão preventiva do réu se estiver convencido de que este está embaraçando a colheita da prova. Ora, se o cautelar é sempre acessório, não faz sentido permitir que aquele que não pode adotar de ofício a providência principal (trazer a prova ao processo) possa fazê-lo, entretanto, em relação ao acessório (garantir a prova). Assim disciplinada a matéria, remanesce violado o perfil acusatório do processo penal. Melhor seria se a decretação das medidas cautelares restritivas de liberdade dependesse também de requerimento do órgão de acusação, em qualquer etapa da persecutio criminis. Esses são apenas alguns exemplos de pontos do projeto de lei de reforma do CPP que merecem maior reflexão.
Boas leis costumam ser fruto de um processo cívico de discussão, que tem, como uma de suas principais etapas, o devido processo legislativo. O momento pelo qual passamos é histórico, e como tal deve ser encarado. Pela primeira vez, na realidade constitucional brasileira pós-88, existem significativas chances de que a vetusta legislação processual penal da década de 40 do século passado seja deixada para trás. É a oportunidade de sepultar definitivamente Manzini e de dar à luz um processo penal de inspiração democrática, em que as garantias fundamentais prevaleçam sobre formalidades procedimentais, em que os princípios tenham mais importância do que as regras – e assim sejam aplicados – em que o homem, a despeito de sua condição jurídica de réu, seja tratado verdadeiramente como fim, e não mais como meio. Se isso ocorrer, é possível que nos baste apresentar o nosso Código de Processo Penal àqueles que quiserem saber se a democracia brasileira já se consolidou.

NOTAS

(1) A respeito da incompatibilidade da pena consensual com o princípio da culpabilidade, ver o nosso Culpabilidade e transação penal nos juizados especiais criminais, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002.
(2) A prisão preventiva, nesse caso, é absolutamente desprovida de cautelaridade. A custódia provisória se presta para preservar o processo (eficácia da sentença ou regularidade da instrução criminal), e não para compelir o acusado a cumprir providências que, no mais das vezes, no caso da Lei Maria da Penha, são impostas com outros objetivos. Esse desvirtuamento fica muito claro, por exemplo, com a possibilidade de decretação da prisão quando o investigado deixa de prestar alimentos provisórios, arbitrados pelo juiz criminal como medida protetiva de urgência.

Marcus Alan de Melo Gomes
Mestre e doutor em Direito.
Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Pará(graduação e pós-graduação).
Vice- coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPA.
Juiz de Direito.

Boletim IBCCRIM nº 209 - Abril / 2010

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