sexta-feira, 23 de abril de 2010

Artigo: Reincidência: um caso de não-recepção pela constituição federal

A reincidência continua a gerar graves consequências, tanto na área penal, como no campo processual, apesar da perda de seu caráter de perpetuidade, em razão da redação dada ao art. 64 do Código Penal. É inquestionável que, dentro do espaço temporal de cinco anos, a reincidência se apresenta ainda como circunstância agravante obrigatória. Dá-se, assim, destaque especial à força propulsora de sentença condenatória, transitada em julgado, por crime anterior. Não vem a pelo explicitar as diversas posições legitimadoras do acréscimo punitivo. Não cabe aqui justificar o plus da pena nem a partir do conceito de periculosidade do agente, conceito esse de nítido viés positivista, nem como expressão de um mais intenso conteúdo do injusto em virtude do alarma social provocado pelo segundo delito, nem mesmo como manifestação de culpabilidade mais reprovável, sob as variantes da culpabilidade de caráter ou da culpabilidade pela conduta de vida. Nem, ao reverso, convém discutir o entendimento predominantemente criminológico pelo qual a reincidência deve ser observada na perspectiva da ação do Estado – não mais sob o enfoque do autor do fato criminoso anterior – já que seria expressão de menor culpabilidade de forma que, em lugar de agregar pena ao novo fato criminoso praticado, o reincidente deveria ser favorecido por uma atenuante.
Pondo-se à parte todos esses posicionamentos – desnecessários para a conclusão que se pretende atingir – força é convir que se tornam também irrelevantes três outras considerações dogmáticas: a) a reincidência está visualmente separada das demais circunstâncias agravantes obrigatórias ( art. 61, I CP); b) as agravantes do art. 61, II, CP exprimem, de forma categórica, condutas atuais – meios e modos de execução embaraçosos à defesa da vítima ou produtores de perigo comum, motivos mais reprováveis, finalidades censuráveis ou direcionamento a parentes ou a pessoas fragilizadas – ao passo que a reincidência “é fruto de uma conduta anterior” (...) “que já foi objeto de consideração judicial e que somente depois de tal consideração se converte numa qualificação subjetiva do autor”(1); c) as circunstâncias agravantes, de enumeração taxativa, são abrangidas pelo dolo do agente – não tem cabimento debitar-lhe um aumento punitivo a título de culpa – mas tal não ocorre em relação à reincidência, o que evidencia a sua condição de corpo estranho no rol das agravantes: não se coloca na mesa de discussão se o agente quis ou não atuar como reincidente, mas tão somente se é ou não reincidente, mesmo que ele desconheça tal condição.
Toda argumentação dogmática sobre os fundamentos legitimadores da agregação punitiva e o total desajuste conceitual da reincidência no rol das circunstâncias agravantes, tornam-se de menor relevo em face da evidente relação conflituosa entre a reincidência e os princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, da Constituição Federal de 1988.
Prima facie, vislumbra-se um ponto de colisão no desrespeito ao princípio do ne bis in idem, no seu caráter bifronte: uma face processual e outra, material. Sob a primeira perspectiva, o princípio inadmite uma persecução penal múltipla, isto é, que uma mesma pessoa e um mesmo fato sejam, de novo, aferidos judicialmente. Sob a angulação material, proíbe a dupla valoração penal na medida em que obsta que o delito anterior produza, de novo, consequências penais. Ora, a reincidência, enquanto agravante, não apenas aplica oficialmente, através de manifestação judicial no segundo processo, o rótulo de reincidente a condenado por fato criminoso anterior, como também valora penalmente o fato precedente para efeito de agregar maior gravidade à pena cominada para o segundo delito, tomando-se a sentença anterior como pressuposto do plus punitivo. E isso significa que o Estado reitera, de forma inadmissível, o exercício do ius puniendi.
A reincidência ofende, no mesmo diapasão, os princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade. Assim, põe em xeque o princípio da legalidade na medida em que provoca uma espécie de ultra-atividade das consequências de um delito anterior já julgado, estendendo seus efeitos a um delito posterior totalmente independente e provoca necessariamente o aumento do quantum punitivo por extensão do fato criminoso anterior. Ora, o princípio da legalidade exige que o juiz permaneça atado aos dados componentes do tipo em julgamento e não suporta um transbordamento punitivo de seu preceito sancionatório, tendo por fundamento fato criminoso anteriormente praticado. Por outro lado, a inflição de aumento punitivo, não previsto na moldura penal em julgamento, corresponde a uma reação penal desproporcionada na medida em que aplica ao condenado sanção que não guarda a necessária proporção com a infração cometida.
Mas não é só.
Ser reincidente significa aderir uma qualidade subjetiva ao infrator já condenado irrecorrivelmente e que comete nova infração penal. É um desvio pessoal que não afeta, em si mesmo, nenhum bem jurídico, ou de forma mais sintética, “é um modo de ser mais do que um modo de atuar”(2). E, no campo do direito penal, a pessoa só pode responder pelo que fez, não pelo que é. “O princípio do direito penal do fato expressa o pressuposto mínimo exigível à intervenção penal do Estado, já que esta não se legitima sem a lesividade e danosidade que, ao menos, o fato cometido representa”(3). O princípio contrário, o princípio oposto, o princípio que conflita aberta e integralmente com o princípio do direito penal do fato é exatamente o princípio do direito penal do autor. Mais do que a pessoa praticou, interessa ao mecanismo punitivo o que a pessoa é. Cria-se não uma tipologia de fatos, mas sim uma tipologia de determinados autores, porque o que deve ser levado em linha de conta é quem praticou o fato, sua personalidade e suas características pessoais. É óbvio que o princípio do direito penal do autor é um caminho às escâncaras a todo tipo de totalitarismo e o Direito Penal, que acolhe a tipologia de autores, não encontra acomodação à ideia de um Estado de Direito. Ora, adicionar uma agravação de pena por ser réu reincidente constitui consagrar um tipo de autor, o que é de todo insuportável num direito penal de conteúdo garantístico.
Mas não param aqui os agravos aos princípios constitucionais. A reincidência confronta-se ainda com o princípio da culpabilidade e o princípio da igualdade.
O princípio da culpabilidade, em escala constitucional, concentra-se no caráter pes­soal da responsabilidade penal. Na compreensão desse caráter pessoal, está inserida a ideia de que a responsabilidade penal é subjetiva, isto é, pertence a seu autor, é própria dele, na medida em que é responsável pelo fato praticado porque quis ou porque tal fato é devido à falta de um dever de cuidado. Como conciliar esse entendimento com o plus da agravação punitiva que é imposta fora do querer do agente – e não há cogitar, no caso, de culpa – ou, dito de outra forma, como fundamentar juridicamente a agravante da reincidência com base no querer derivado, não do fato objeto de julgamento, mas sim de um outro fato, já julgado, distinto e anterior?
A agravação da pena pela reincidência infringe também o princípio constitucional da igualdade na medida em que se aplicam penas diferenciadas em relação a réus que praticaram fatos iguais. O princípio da igualdade contrapõe-se, em verdade, ao “arbítrio, ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo os critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes. Proíbe a discriminação, ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas”(4). Ora, é patente que a agravação penal provocada pela reincidência acarreta um tratamento desigual entre acusados que praticaram o mesmo fato criminoso e o arbítrio, nessa forma de tratamento punitivo, fica à mostra ao verificar-se que o acréscimo punitivo não decorre do fato criminoso ajuizado, mas sim em função de condenação anteriormente sofrida. Trata-se, no caso, de tratamento punitivo que deixa a nu uma discriminação perversa.
Resta ainda colocar em destaque que a reincidência entra em rota de colisão com o princípio constitucional, de caráter processual penal, da presunção de inocência. Com efeito, a possibilidade de dupla sanção penal através da reiteração no exercício do ius puniendi estatal revela-se em “franca contradição com o princípio da presunção de inocência porque a coexistência de dois procedimentos sancionadores para um determinado ilícito deixa aberta a possibilidade, contraria àquele princípio, de que os mesmos fatos, sucessiva e simultaneamente, existam e deixam de existir para os órgãos do Estado”(5). Além disso, fere ainda o princípio da presunção de inocência o fato da perigosidade do agente ser presumida iuris et de iure. Ocorrida a reincidência, não cabe discutir se é ela reveladora ou não de uma pessoa perigosa: o acréscimo punitivo é aplicável, sem que se possa em momento algum fazer-se prova da carência dessa perigosidade.
Todas as considerações feitas anteriormente denunciam a mais absoluta incompatibilidade entre um instituto que participa de lei infraconstitucional (Código Penal de l940) e os princípios fundamentais que expressam o norte político-ideológico da Constituição Federal de l988. Ora, ocorrida tal hipótese, a lei infraconstitucional precedente estará automaticamente revogada. Trata-se, aqui, do princípio da manifesta soberania da Constituição, que estando no ápice de todo o ordenamento jurídico, tem inquestionável primazia em relação à lei ordinária que lhe é anterior. Isto não quer dizer que toda legislação precedente a uma nova Constituição Federal esteja automaticamente revogada, mas, sim, que toda legislação anterior, que com ela confronte, não poderá subsistir. Ora, no caso do instituto da reincidência, ficou patente a sua total incoerência com os preceitos fundamentais da Constituição Federal de l988 e, por isso, não foi por ela recepcionado.
Não se nega que a reincidência possa ser valorada penalmente; o que se exclui é que continue, no Estado Democrático e Social de Direito, a ser incluída entre as agravantes obrigatórias. A recaída em crime poderá ser livremente avaliada pelo juiz caso a caso, em procedimento de individualização da pena, a título de mera circunstância judicial facultativa (art. 59 do CP), nada obstando que em determinadas situações seja até considerada como circunstância atenuante inominada (art.66 do CP). A execução penal pela qual é responsável o Estado, em lugar de reinserir o condenado na sociedade, pode provocar um processo ressocializador às avessas, redundando numa total e absoluta dessocialização.
A conclusão final é a de que a reincidência, como hoje é definida no Código Penal, deve ser expurgada da legislação brasileira, “da mesma forma como desapareceu em determinado momento a tortura no âmbito processual ou a analogia no campo penal”(6), perdendo, consequentemente, o seu caráter de circunstância obrigatória de agravação punitiva.

NOTAS

(1) GARZON REAL, Baltazar e MONJÓN-CABEZA OLMEDA, Ariceli. Reincidencia y Constituición, Acutalidad Penal, Madrid: Ectualidad Editorial, n. 1, Dez., l990, p. 3.
(2) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, 7. ed., trad. Perfecto Andrés Ibañez et alii, Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 508.
(3) GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Introducción al Derecho Penal, 4. ed., Madrid: Editorial Universitaria Ramon Aceres, 2006, p. 531.
(4) GOMES, Canotilho JJ. Direito Constitucional, 5. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 577.
(5) MACHADO, Salvador Iglesias e MORENO Y BRAVO, Emilio. La prohibición constitucional y penal, Cuadernos de Estudios Superiores de Especialidades Jurídicas, n. 89, 2006, p. 78.
(6) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Revista de Ciências Penales,, n. 2, Montivideo, l996, p. 126.


Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.


Boletim IBCCRIM nº 209 - Abril / 2010

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