Em 25 de novembro de 2008, foi sancionada a Lei 11.829/2008, no 3º Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual da Criança e Adolescente, sediado em Jacarepaguá no Rio de Janeiro.
A legislação veio a lúmen após os trabalhos da CPI da pedofilia, instaurada em 2008, inspirada esta nos resultados da Operação Carrossel da Polícia Federal que, em dezembro de 2007, no cumprimento de mais de 100 mandados de busca e apreensão, chegou a suspeitos de envolvimento com a produção e divulgação de pornografia infantil.
O novo diploma, na trilha da reforma encampada já em 2003 através da Lei n°. 10.764, veio a alterar novamente o ECA, modificando a redação dos artigos 240 e 241, e acrescendo novos tipos penais capitulados nos artigos 241-A, 241-B, 241-C e 241-D.
As alterações justificam-se, segundo o próprio preâmbulo da lei, no sentido de aprimorar o combate à produção, à venda e à distribuição de pornografia infantil, bem como de criminalizar a aquisição e a posse de tais materiais, penalizando também outras condutas relacionadas à pedofilia na internet.
À revelia das mudanças de que foram alvos os artigos 240 e 241 e da inserção das novas figuras delitivas, talvez mereça mais atenção a conduta do artigo 241-C, por inovar drasticamente na punição relativa à pornografia infantil e à utilização de meios informáticos para a produção e divulgação desse material.
Assim penalizou o legislador: “Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo”.
O tipo objetivo é claro em descrever a conduta criminosa, consistente no fato de simular, ou seja, representar, fazer aparentar, disfarçar, distorcer ou fingir a participação de crianças e adolescentes em cena de sexo explícito ou pornográfica, por meio de adulteração (falsificação, contrafação, alteração) ou montagem (preparação, construção), de fotografias, vídeos ou qualquer outra forma de representação visual.
A conduta desvenda, nos modernos programas de computador, um novo modus operandi na comissão de delitos atentatórios à dignidade sexual de crianças e adolescentes. As penas de 1 a 3 anos de reclusão e de multa cabem na hipótese daquele que, mediante o emprego da tecnologia de software, consegue alterar imagens e vídeos a ponto de modificar substancialmente seus caracteres externos como cenário, personagens, figuras, paisagens etc.
Por ocasião da conduta típica, estende-se a atuação do Direito Penal àquele que, após registrar em filmagens ou fotografias cenas de sexo entre adultos, ou ainda, resolva retratar por tais mecanismos seus próprios momentos de intimidade, adultera posteriormente tais materiais, por meio de programas específicos de informática, capazes de tornar os protagonistas dessas cenas anos mais jovens - modificando seus rostos e corpos até a idade infantil.
A figura cuida da chamada pseudo-pornografia(1), vez que os materiais produzidos não retratam verdadeiramente encenações de sexo explícito envolvendo crianças ou abusos sexuais praticado por adultos (pedopornografia)(2), mas tratam-se de mera simulação, o que faz surgir questionamentos relativos à ofensividade penal de tal comportamento.
Seguindo o espírito da Lei 11.829, vê-se que a intenção é a tutela penal da dignidade sexual de crianças e adolescentes. Contudo, razoável perceber que em nada protege o bem jurídico o tipo do artigo 241-C, pois em nenhuma circunstância é capaz a conduta incriminada de oferecer dano efetivo ou risco iminente ao referido bem jurídico.
A dignidade sexual(3) é o estado ou situação da criança e/ou adolescente em ver-se livre de danos concretos ou potenciais prejuízos à sua intangibilidade sexual. Logo, a proteção penal do bem jurídico em epígrafe se pautaria minimamente em um resultado de perigo que lhe oferecesse riscos, o que não ocorre in casu.
As simulações, nos moldes descritos pelo caput do artigo 241-C, ou mesmo a posterior divulgação do material simulado, como descreve sua forma equiparada no parágrafo único, não comportam ofensividade hábil a justificar o tipo penal em apreço.
Ações como essas poderiam, não obstante, expor, mediante a divulgação do material simulado, a intimidade ou a privacidade dos adultos que tiveram suas imagens adulteradas. Entretanto, é possível que tanto um quanto outro parceiro sexual consintam, que após a filmagem da relação sexual, seja a gravação submetida às transformações pelo software.
Outrossim, como observa Ricardo Lackner(4), a simulação pode resultar na inserção do rosto de crianças reais em fotografias ou imagens pornográficas que envolvam tão-somente adultos. Mesmo assim, não há lesividade alguma à dignidade sexual do infante, já que o alvo de eventual e futura contemplação erótica é o corpo adulto. O que haveria, ocorrendo a publicação do material, seria a violação a direitos de personalidade, neste caso, relativos à imagem da criança.
Evidente, portanto, que a preocupação central do legislador consiste sancionar as manobras de alguém que saiba ou queira empregar um dado programa de computador a fim de alterar um conjunto de imagens ou fotos, da forma como acima explicitado, em lugar de efetivamente proteger a dignidade sexual de crianças e adolescentes contra atos de pornografia ou estímulo à pedofilia virtual.
Na maioria das vezes, utiliza-se em grande escala da tipificação de figuras sob a categoria de crimes de perigo abstrato e de mera conduta. Neste caso, a predileção pela incriminação do comportamento do artigo 241-C sob a tipologia de perigo presumido, busca antecipar a punibilidade, na crença de que isso possa salvaguardar o bem jurídico de forma mais eficaz.
Pela análise dessa tessitura, vê-se que o Direito Penal caminha a passos largos rumo à expansão(5) da legitimação do jus puniendi a campos que indiscutivelmente deveriam figurar como indiferentes penais. Certamente, no caso da Lei 11.829/2008, a ampliação do direito repressivo se baseia na necessidade de modernizá-lo, para fazer frente aos reclames advindos da chamada sociedade de risco.
Esse novo modelo social, segundo pontifica Pierpaolo Cruz Bottini, é fruto do surgimento de inovações científicas(6) (a exemplo do sistema informático como um todo e da internet) que, pari passu seu incremento e evolução, não são acompanhadas por meios que possam conter seus efeitos deletérios. Nesse diapasão, o alto estágio da técnica possibilitou ao homem rejuvenescer sua própria imagem, alterando-a e contextualizando-a em diversas situações.
Acerca dessa tendência, obtempera acertadamente Luis Gracia Martín que o Direito Penal, nessa conjectura, é construído por um grupo de tipos delitivos com um conteúdo de injusto relativamente homogêneo em virtude do dado comum que em todos eles se constata a realização de condutas que representariam apenas, no máximo, um simples e mero perigo abstrato para bens jurídicos, principalmente individuais(7).
Todavia, enquanto os avanços tecnológicos e seu uso não despertar no Direito de ultima ratio sua função primordial – a exclusiva proteção de bens jurídicos – quer por não conter potencialidade lesiva ou mesmo ocasionar danos efetivos –, não pode ao menos a comunidade acadêmica compartir com a punição de condutas como esta do artigo 241-C da nova Lei.
Por derradeiro, ante a incontestável inofensividade do tipo e da consequente descaracterização da função precípua do Direito Penal, aguarda-se, de lege ferenda, sua devida abrogação.
NOTAS
(1) Vide: LACKNER, Ricardo. Delitos relativos a la pornografía infantil en la Ley 17.815. Revista de Derecho Penal. Montevideo, nov./2006, p.457.(2) Inês Ferreira Leite entende que o termo pedopornografia compreende “qualquer representação, por meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais”. Por questões de morfossintaxe, acredita-se que a melhor definição de pedopornografia (pedofilia + pornografia), seriam os atos de pedofilia em geral que são registrados na forma de fotografias, imagens, vídeos - associadas ou não a sons ou escritos - ou outras formas de representação visual - nas mesmas condições - desde que constituam explícito material pornográfico infantil. Vide: LEITE, Inês Ferreira. Pedofilia: repercussões das novas formas de criminalidade na teoria penal da infracção. Coimbra: Almedina, 2004, p. 54.
(3) Grande é a discussão no campo doutrinário sobre qual seria o bem jurídico tutelado nas incriminações que envolvam abuso sexual de crianças e adolescentes. As principais teses defendidas são no sentido de tratar-se da autodeterminação sexual, da liberdade sexual, do livre desenvolvimento sexual, da dignidade sexual (posição aqui adotada) e da indemnidad sexual. Acerca desta última posição, vide: BARBA ÁLVAREZ, Rogelio. La indemnidad como bien jurídico en el entorno sexual del menor e incapaz. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos. Bauru, n. 42, p.13-28, jan./abr.2005.
(4) Vide: LACKNER, op.cit, p. 457.
(5) Vide: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2001, p.25.
(6) Vide: BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: RT, 2007, p.33.
(7) GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de resistência. Trad. Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005, p.47.
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
Aluno do 5º ano do curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM),
Monitor de Direito Penal e membro bolsista do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDIJ) pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná.
Aluno do 5º ano do curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM),
Monitor de Direito Penal e membro bolsista do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDIJ) pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná.
Errata: no artigo Júri: Decisão Absolutória e Recurso da Acusação por Manifesta Contrariedade à Prova dos Autos – Descabimento (Boletim 207, p. 14), de autoria de Guilherme Madi Rezende, o autor quis se referir à alínea ‘d’ do artigo 593, III, do CPP, e não à alínea ‘d’, como constou do texto publicado.
Aluno do 5º ano do curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM),
Monitor de Direito Penal e membro bolsista do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDIJ) pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná.
Monitor de Direito Penal e membro bolsista do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDIJ) pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná.
Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010
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