“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.
Assim Guy Debord definiu as sociedades contemporâneas como sociedades do espetáculo, em que a representação torna-se a principal forma de se entrar em contato com as experiências da vida. E a imagem foi eleita por esse modelo de organização social como o mecanismo mais eficaz de representação da realidade. No Brasil, vem-se edificando nos últimos anos uma espécie de “república das imagens”, em que aquilo que é veiculado pela mídia tem o condão não só de definir os rumos de políticas públicas – inclusive da política criminal –, mas também de desviar a atenção das verdadeiras causas dos problemas sociais.
Mais uma vez nos deparamos com a televisão veiculando as imagens de pessoas recolhidas a um mesmo ambiente doméstico, e a divulgação de sua rotina privada a quase todos os lares da nação, num espetáculo de mercantilização das pequenezas humanas que, paradoxalmente, produz verdadeiros astros midiáticos. Vota-se e paga-se para definir quem fica, como numa gincana virtual em que o que vale mais é tudo que agrada aos olhos. Enquanto essa banalização da ética humana – ou da falta dela – se converte no espetáculo do dia, milhões de pessoas permanecem impedidas de exercer direitos constitucionais mínimos, como o acesso à saúde, à educação, à moradia etc. Para tais pessoas, não se concretiza a dignidade humana prevista na Constituição, e para muitas delas o caminho é a delinquência, que, se não é determinada pela miséria humana, por esta é seguramente influenciada. Por outro lado, a criminalidade tem também o seu espaço na sociedade do espetáculo. Entretanto, ao contrário dos reality shows, a imagem do crime não se destina à criação de heróis midiáticos, mas, sim, à sustentação do discurso retributivista, que precisa de um inimigo para se legitimar.
Nos últimos meses, imagens vêm definindo o futuro político da capital do País. Em virtude delas, um governador foi preso provisoriamente e parlamentares distritais renunciaram ao mandato. Poder-se-ia dizer: ora, não há o que discutir, tudo foi filmado! O assunto se converteu no principal item da pauta midiática, enquanto outros, que até bem recentemente estavam no olho do furacão dos meios de comunicação, foram esquecidos. O alívio, neste caso, foi do Presidente do Congresso Nacional. É como disse Ignacio Ramonet em A tirania da comunicação: o objetivo da televisão não é fazer-nos compreender uma situação, mas fazer-nos assistir a uma aventura ou desventura. E assim retomamos o espetáculo!
A imagem invadiu definitivamente as sociedades, em que a cultura de massa influencia não apenas gostos e preferências de entretenimento, mas também as escolhas políticas dos cidadãos. A indústria cultural, de que falaram Adorno e Horkheimer há 50 anos, se consolidou com a tecnologia da televisão via satélite e da internet, e os meios de comunicação passaram a controlar as engrenagens delas.
É por isso que a mídia se transformou num vetor da política criminal no Brasil. Leis são promulgadas em razão da cobertura que os meios de comunicação destinam a determinados episódios. O exemplo emblemático desse processo é a Lei de Crimes Hediondos, cujos excessos até hoje defrontamos. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), anos depois, veio confirmar a tendência de recrudescimento da intervenção penal a partir do que, de como e de quando a mídia o veicula. O processo penal, por sua vez, é transformado frequentemente numa verdadeira arena virtual, em que quase todos os espectadores torcem contra o réu. Essa dinâmica de crescimento e de agravamento da resposta penal tem conseguido se justificar pelo discurso da defesa social, em que a criminalidade é tratada como uma chaga letal, e o criminoso como seu agente de contaminação.
Não se pretende aqui questionar a liberdade de imprensa. De forma alguma! Ela é imprescindível ao Estado Democrático de Direito. O objetivo é exatamente o contrário: defendê-la, mas num contexto de legitimação social, em que os recursos empregados pela mídia, suas pretensões e as prováveis consequências de sua agenda estejam também submetidas aos princípios constitucionais que estabelecem limites à atuação de todas as instituições democráticas. O que se pretende destacar é que, exatamente em virtude de sua importância para a democracia, os meios de comunicação não podem funcionar como máquinas de alienação do indivíduo, como lugar de exposição do banal, ou – talvez pior – como empresas de manipulação do poder estatal e da política criminal.
É preciso fechar as cortinas do espetáculo e encarar o futuro com um olhar sereno e equilibrado. Nunca conseguiremos enxergar a verdadeira imagem dos problemas do País, especialmente em matéria de delinquência, se os holofotes e câmeras da mídia estiverem ligados na busca dos índices de audiência. Enquanto isso ocorrer, não atingiremos a plena cidadania.
Boletim IBCCRIM nº 209 - Abril / 2010.
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