A Lei 12.015/2009 alterou, em profundidade, o cenário dos delitos sexuais no Brasil. Entre as diversas alterações introduzidas pela reforma, um ponto merece atenção especial: a criação do delito cuja conduta está descrita no artigo 218 do Código Penal, que, embora não possua rubrica marginal, foi apelidado por Nucci como “mediação de vulnerável para servir à lascívia de outrem”(1).
Como se sabe, já havia, no art. 227 do Código Penal, o crime de mediação para servir à lascívia de outrem, crime anacrônico e violador do princípio constitucional da lesividade, que, lamentavelmente, foi mantido intacto pela lei penal supracitada. Configura-se o crime, na figura simples do caput, quando alguém induz uma pessoa maior e plenamente capaz a satisfazer a lascívia de outra pessoa também maior e plenamente capaz. Quer-se punir a conduta do adulto que induz adulto a saciar a lascívia de outroadulto! Não se sabe exatamente como a conduta sexual de adultos plenamente capazes pode interessar ao legislador penal... Trata-se de moralismo sexual do legislador de 1940, que parece ainda nortear o legislador de 2009.
Questão diferente é quando alguém induz um vulnerável a satisfazer a lascívia de outrem. Este, de fato, precisa ter tutelada a sua dignidade sexual. Essa preocupação não escapou ao legislador reformista, que reservou o Capítulo II do Título VI da Parte Especial do Código Penal para a tutela criminal dos vulneráveis, no que tange à sua dignidade sexual – “Dos crimes sexuais contra vulnerável”.
Nesse novo contexto promovido pela reforma, o legislador houve por bem inserir, no mencionado capítulo, o crime de “mediação de vulnerável para servir à lascívia de outrem” (art. 218 do Código Penal). Trata-se de crime que utiliza as mesmas elementares do antigo artigo 227, diferenciando-se deste no que tange ao sujeito passivo, pois a vítima do crime previsto no artigo 218 será necessariamente vulnerável.
Contudo, ao criar este crime, o legislador gerou um sério problema para se determinar cientificamente o âmbito de incidência desse novo dispositivo penal, principalmente porque ele tangencia o campo de incidência de outras modalidades delituosas como, por exemplo, o estupro de vulnerável.
Sabe-se que a Lei 12.015/2009, acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando a figura do “estupro de vulnerável”, que consiste na conduta daquele que tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, com enfermo ou deficiente mental sem capacidade de discernimento para a prática do ato, ou com aquele que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (art. 217-A, capute § 1º, do Código Penal).
Ante a existência de tais condutas delituosas, questiona-se qual será a solução jurídico-penal adequada se, por exemplo, o agente induz o vulnerável a saciar a lascívia de “A”, que consiste em ter conjunção carnal com a vítima: o agente deve responder como partícipe de estupro de vulnerável (art. 217-A) ou como autor do crime previsto no art. 218 do Código Penal?
Para responder essa questão, será preciso retomar alguns conceitos referentes ao concurso de pessoas.
O legislador, ao regulamentar o concurso de pessoas no artigo 29 do Código Penal, adotou, como regra, a teoria monística, ao estabelecer que todas as pessoas que concorrem para a prática do fato delituoso respondem por um único e mesmo crime.
Afastou, portanto, do ordenamento jurídico brasileiro a teoria dualística, segundo a qual “há dois delitos, um para os autores, que realizam a atividade principal, o tipo legal de delito, e outro para os partícipes, aqueles que desenvolvem uma atividade secundária, que não realizam a conduta nuclear descrita no tipo penal”(2). Não acolheu, igualmente, o legislador a teoriapluralística, para a qual cada participante do fato responderá por um crime diverso.
Pois bem. Feita essa breve digressão, é possível vislumbrar, em princípio, três interpretações para o art. 218 do Código Penal.
A primeira interpretação possível – e também a mais frágil – é entender que o art. 218 do Código Penal traz um crime formal, que se consuma com a simples indução do vulnerável, independentemente da satisfação ou não da lascívia de outrem. Aliás, na hipótese de efetivamente ocorrer a satisfação da lascívia de outra pessoa, o indutor pode responder por crime mais grave (partícipe em estupro de vulnerável, por exemplo).
Mas essa interpretação fere, por óbvio, o princípio da proporcionalidade. Como bem observa Nucci, “dar a idéia a um menor de 14 anos para satisfazer a lascívia de outrem, sem que nada ocorra, jamais poderia ser crime consumado, implicando pena de dois a cinco anos de reclusão”(3).
Outra interpretação possível é no sentido de que o crime previsto no art. 218 do Código Penal, embora seja um crime material – que se consuma com a efetiva satisfação da lascívia de outrem –, é, também, um crimeresidual (subsidiário) – que só se configurará quando não for o caso de adequação típica em crime mais grave.
Dessa forma, quando a satisfação da lascívia de terceiro consistir, por exemplo, em estupro de vulnerável, o agente que induz o vulnerável à prática do ato deverá responder como partícipe moral do estupro de vulnerável – e não pelo crime descrito no art. 218. Apenas quando o ato de saciar a lascívia de terceiro não se adequar em nenhuma figura típica mais grave é que o indutor responderá pelo crime previsto no art. 218 do Código Penal.
Parece ser esse o entendimento de Rogério Sanches Cunha:
“no lenocínio comum (art. 227) não importa a espécie de lascívia que a vítima é induzida a satisfazer. Já no art. 218, tratando-se de vítima menor de 14 anos, não pode consistir em conjunção carnal ou atos libidinosos diversas da cópula normal, pois, nesses casos, haverá o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Limita-se, portanto, às práticas sexuais meramente contemplativas, como por exemplo, induzir alguém menor de 14 anos a vestir-se com determinada fantasia para satisfazer a luxúria de alguém”(4).
A solução, contudo, parece difícil de ser aceita, considerando os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade, porque, nesse caso, a pessoa que teve a lascívia realmente saciada pelo menor (destinatário do crime) não responderá por delito algum, ao passo que aquele que apenas induziu o menor a satisfazer a lascívia do destinatário responderia por crime cuja pena mínima é de 2 (anos) de reclusão – pena mais elevada do que a cominada ao homicídio culposo, por exemplo.
Ante o exposto, a solução hermenêutica mais adequada seria aquela que considera que o legislador da reforma penal de 2009 estabeleceu, ao criar o crime de “mediação de vulnerável para satisfazer a lascívia de outrem”, uma exceção à teoria monística do concurso de pessoas.
Isso porque, quando alguém tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com vulnerável, deverá responder como autor do estupro de vulnerável, nos termos do art. 217-A. Por outro lado, aquele que apenas induziu o menor a manter referidos atos sexuais com o terceiro, não responderá como partícipe moral de estupro de vulnerável, mas como autor do crime estabelecido no art. 218 do Código Penal.
Dessa forma, o legislador estabeleceu crimes diferentes para participantes de um mesmo fato (excepcionando, portanto, a teoria monística do concurso de pessoas).
O entendimento ora exposto é reforçado pelo fato de que a Lei 12.015/2009 não atribuiu rubrica marginal ao art. 218 do Código Penal, fazendo crer que este dispositivo ainda está no âmbito de regulamentação do estupro de vulnerável.
Mas o problema da interpretação do art. 218 não pára por aí. O legislador, ao criar o tipo penal sob exame, estabeleceu como núcleo apenas o verboinduzir, que significa fazer surgir na mente de uma pessoa uma ideia até então não imaginada por esta. Trata-se de uma modalidade de participação que aqui aparece como núcleo do tipo.
Como se sabe, a participação pode ser moral ou material. Na participação moral, o agente atua fazendo surgir a ideia na mente da pessoa (induzimento) ou apenas estimulando, reforçando, uma ideia já existente (instigação). Já na participação material (auxílio), a atuação do agente se reveste em uma contribuição material, em uma ajuda material.
Assim, questiona-se: e se o agente, ao invés de induzir, apenas instigar ouauxiliar materialmente o menor a ter conjunção carnal ou a praticar outro ato libidinoso com terceiro? Responderá ele nos termos do art. 218 do Código Penal ou nos moldes do art. 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável)?
Pode-se pensar, em um primeiro momento, que, como tais condutas não foram abarcadas pelo tipo penal previsto no art. 218 do Código Penal, seriam elas atípicas diante deste dispositivo. Porém, logo se concluiria queatipicidade é apenas relativa, porque, embora as condutas de instigar eauxiliar não componham o art. 218, configurariam, certamente, participação no crime de estupro de vulnerável, em virtude da norma de extensão prevista no art. 29 do Código Penal.
Tal contrassenso, porém, não pode prevalecer por importar em repúdio à ordem constitucional.
Quer-se crer que o legislador deixou lacunas na descrição típica do art. 218 do Código Penal ao não mencionar a instigação e o auxílio, cabendo, portanto, ao intérprete recorrer aos recursos de integração de lacunas da lei. Dentre estes recursos, se encontra a analogia, admitida no Direito Penal quando favorável ao agente (analogia in bonam partem).
Considerando que as condutas de instigar e de auxiliar são semelhantes à conduta de induzir, pode-se utilizar, para regulamentar as duas primeiras condutas, a norma que o legislador estabeleceu para regulamentar a conduta assemelhada.
Outra solução, aliás, padeceria de manifesta iniquidade, pois o indutor (aquele que cria a ideia) responderia por crime sensivelmente mais brando (art. 218), ao passo que o instigador (que nem a ideia criou), responderia por crime drasticamente mais grave (art. 217-A). A afronta de tal interpretação ao princípio constitucional da proporcionalidade seria insuportável.
Desse modo, o art. 218 deve abranger, não apenas a conduta de induzir (expressamente prevista), mas também as condutas de instigar e deauxiliar. Conclui-se, pois, que o círculo incriminador do art. 218 deve abarcar todas as modalidades de participação existentes (moral e material). Mas atente-se que, neste caso, não se trata de participação, já que as condutas de induzir, instigar e auxiliar constituem os núcleos do tipo penal e, assim, quem as executar será autor do crime descrito no art. 218 do Código Penal.
Nessa senda, fica claro que o legislador estabeleceu uma exceção dualísticaà teoria monística(5), em que o autor da prática de ato libidinoso com o vulnerável deve responder por estupro de vulnerável, enquanto aqueles que inicialmente seriam partícipes deste crime devem responder como autores da figura prevista no art. 218 do Código Penal.
NOTAS
(1) NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual:comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. p. 44.
(2) PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 1. 8 ed. São Paulo: RT, 2008. p. 444.
(3) NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. p. 46.
(4) GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à reforma criminal de 2009 e à Convenção de Viena sobre o direito dos tratados. São Paulo: RT, 2009. p. 53.
(5) É esse o entendimento de NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. p. 45-48. Ressalta-se, apenas, que o ilustre professor fala em “exceção pluralística à teoria monística”, quando parece ser mais adequado falar em “exceção dualística à teoria monística”.
Galvão Rabelo, Especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, em Ubá, Minas Gerais.
Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário