Introdução
Problemas de difícil resolução, de caráter social, ético e jurídico, surgem com os constantes avanços científico-tecnológicos na área da engenharia genética. Neste influxo, o Direito pretende regular detidamente a matéria, com vistas a encontrar soluções conciliadoras entre os diversos interesses sociais, econômicos, morais e religiosos contrapostos.
Indubitável é a necessidade atual de tutela deste espectro de atividades vinculadas ao progresso humano, ainda mais quando se pensa que a criação científica constitui parte das liberdades essenciais de um Estado Democrático de Direito pluralista e que pretende a consecução do desenvolvimento social.
A questão notória é a de que nenhum direito é absoluto, apresentando-se, portanto, limites ao investigador para que haja compatibilidade com outros interesses, também dignos de proteção. De fato, do mesmo modo que a engenharia genética, ou melhor, o avanço de suas técnicas, traz indiscutíveis benefícios, seja, e.g., no campo da biologia, agricultura, medicina ou meio ambiente, também pode acabar por apresentar inúmeros riscos para a saúde pública, o meio ambiente, a economia, enfim, para a vida em sociedade como um todo, além de poder ferir crenças morais ou religiosas.
Diante das circunstâncias apresentadas, restam por demais evidentes as repercussões das biotecnologias sobre o complexo sistema de valores que compõe a organização social, de modo que o ordenamento jurídico pátrio vem sendo constantemente atualizado, com a incorporação de novas normas, tudo com vistas à regulamentação do temário. Aos penalistas, cumpre, então, refletir se o ramo jurídico-penal há de intervir nesta seara.
Insta ressaltar que a atual sociedade, chamada de sociedade do risco, refletiu-se no Direito Penal pela introdução de novos delitos, bem como pela consagração de peculiares técnicas tipificadoras, em face do temor global caracterizado por novos e elevados riscos que pesariam sobre a humanidade, frutos da pós-modernidade. Daí a relevante utilização do adiantamento da intervenção penal por meio, por exemplo, dos delitos de perigo abstrato, das normas penais em branco e dos tipos abertos, além da flexibilização das garantias penais e processuais penais, tudo com vistas à tutela dos novéis bens jurídicos de caráter supraindividual, ainda pouco sedimentados, abusando-se do simbolismo do Direito Penal.
Dessa maneira, este ramo jurídico é chamado a intervir para equilibrar de forma protetora os avanços técnico-científicos com outros interesses, bem como controlar as eventuais disfunções e abusos que pesquisadores possam produzir no seu atuar(1).
Indaga-se então acerca das necessidades e possibilidades de proteção jurídico-penal no campo da engenharia genética, refletindo-se sobre a identificação dos bens jurídicos passíveis de afetação. Em caso se sinalização positiva, há de se ter em conta a indicação de limites para tal regulação e, por derradeiro, a determinação do que se deve sancionar com as respectivas instrumentalidade e intensidade.
Não se olvide, outrossim, que os limites penais das novas técnicas genéticas devem se coadunar com valorações constitucionais, jurídico-penais ou outras, sem, contudo, servir de freio aos avanços da ciência. Eis a controvertida questão. Mas, sem embargo, o Direito Penal somente deve intervir quando seja inafastável para a proteção de bens jurídicos fundamentais ao livre desenvolvimento humano.
A atual Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05) tem por objeto, segundo o seu art. 1º, estabelecer o regime jurídico aplicável às normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação em meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados e seus derivados, depreendendo-se, desde já, maior abrangência e avanço quando se compara à lei anterior (Lei nº 8.974/95, revogada), procurando o novel diploma encerrar todos os aspectos jurídicos que envolvem as relações por ela reguladas.
No tocante aos tipos incriminadores, a lei prevê, além dos casos envolvendo as células germinativas e a clonagem humana (arts. 24 a 26), condutas infracionais ligadas ao meio ambiente, como a liberação ou descarte de organismos geneticamente modificados em desacordo com as normas vigentes, com pena de reclusão, além das agravantes no caso de dano a propriedade vizinha, ao meio ambiente, lesão corporal de natureza grave a outrem ou morte (art. 27); o uso, comercialização, registro, patenteamento e licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso, segundo o art. 28; e o disposto no art. 29, ou seja, a produção, armazenamento, transporte, comercialização, importação ou exportação de organismos geneticamente modificados ou derivados sem autorização, ou em desacordo com as normas vigentes.
A finalidade legal é justamente evitar eventuais perigos e/ou reduzir os danos para a saúde humana ou o meio ambiente derivados de tais atividades, com a observância do princípio da precaução. Sobre este, explica BOTTINI: “A aplicação do princípio da precaução decorre da ausência de conhecimentos sobre a periculosidade de determinadas atividades: logo, deriva da inexistência de certezas científicas ou estatísticas sobre quaisquer resultados concretos decorrentes das mesmas, quer de caráter lesivo, quer de caráter perigoso”(2).
A necessidade de avaliação, prevenção e administração desses riscos indiciários atinentes ao desenvolvimento das biotecnologias representa um objetivo político relativamente recente na sociedade, haja vista os avanços significativos da genética e biologia molecular experimentados nas últimas décadas. Fato é que, todavia, o cerceamento criminal de condutas relativamente às quais não se detém certeza científica quanto à sua lesividade a interesses humanos fundamentais revela-se ilegítimo, ferindo-se os limites e as garantias inerentes a este gravoso meio de controle social(3).
Dificuldades há, ainda, no que concerne à identificação do bem jurídico penal na hipótese. Em que pesem as opiniões divergentes acerca do objeto tutelado – preservação do meio ambiente, biodiversidade, integridade do patrimônio genético, dentre outros –, parece ser a biossegurança a proteção jurídica mais convincente, isto pois em face do surgimento de inúmeros riscos desconhecidos e muitas vezes incontroláveis, típicos da sociedade do risco, pode-se atingir um número indeterminado de pessoas ou mesmo a espécie humana.
Neste contexto, nota-se a real possibilidade de destruição das espécies vivas por meio de armas biológicas ou da disseminação de doenças desconhecidas por microorganismos(4) transgênicos, razão pela qual se tem a biossegurança como objeto jurídico supraindividual em sentido técnico. Entretanto, o interesse especificamente protegido há de ser aferido em cada figura típica em foco, mensurando-se a seguir, como referido acima, a lesividade da conduta. Ou seja, a identificação do bem jurídico é condição necessária, mas não suficiente, para justificar uma incriminação.
Constatado o bem jurídico-penal - que não pode ter por base meras concepções morais, ideológicas ou religiosas, por falta de referencial substancial(5) - e a exigência material da lesividade - avaliada de modo ex ante -, todavia, há ainda que se perquirir relativamente à adequação da criminalização quanto à estrutura básica jurídico-penal. Isso significa atentar-se para as características da subsidiariedade, taxatividade, culpabilidade, proporcionalidade, dentre outras, ínsitas à técnica tipificadora criminal.
Neste jaez, a lei em comento revela amplas incompatibilidades. Há dificuldades quanto a seu conteúdo técnico, sendo, por exemplo, verdadeiramente impossível definir-se o que seria embrião inviável(6). Ainda, como bem observa Bechara, “De outro lado, revelam-se desproporcionais as sanções previstas nos arts. 24 e 25, ambas referidas à tutela do embrião. Ora, causar a destruição de embrião com o fim de pesquisa enseja pena de detenção de 1 a 3 anos ao autor, enquanto praticar terapia genética neste mesmo embrião, o que lhe poderá ocasionar, inclusive, benefícios concretos, sujeita o agente à pena de reclusão de 2 a 5 anos”(7). Aliás, quanto a este último aspecto, revela-se absurda uma punição criminal quando se beneficia um interesse humano alheio.
Também se abusa da assessoriedade administrativa. Assim, muito se fala que as hipóteses incriminadoras estabelecidas na lei ora analisada assumem o caráter de delitos de mera desobediência, pois constam dos mais diversos tipos expressões variantes indicativas do desacordo a normas administrativas ou da ausência de autorização da Administração Pública. Dessa maneira, o Direito Penal teria uma função secundária, punindo a violação de prescrições administrativas.
A contrario sensu, autores há que entendem que nos delitos de biossegurança a tutela penal é relativamente dependente da norma administrativa, o que não impediria também a tutela direta e independente nos casos de maior gravidade. Em outras palavras, o que se entende merecedor das sanções penais não são as lesões contra o Direito Administrativo, mas ações que possuam como consequências, potenciais ou reais, lesivas à saúde pública e/ou ao meio ambiente, ainda que seja necessário evidenciar tal danosidade recorrendo-se à esfera administrativa, a qual determina, com finalidade preventiva, as margens de atuação individual.
Não obstante, o fato é que, independentemente da função exercida pelo Direito Penal, a sua intervenção nessa esfera deve ser sempre limitada e precisa, evitando-se os excessos e a violação ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, assim como aos demais aspectos de garantia jurídico-penais. Por outro lado, o ideário de utilização do fenômeno criminalizador para meros fins preventivos de conformação de comportamentos ou consciências ostenta-se algo arbitrário(8) e, portanto, antidemocrático.
O operador do Direito sempre encontra dificuldades em transpor obstáculos quando se depara com uma realidade social nova, principalmente quando a problemática estiver atrelada aos avanços científicos e tecnológicos. Isto pois, para efetivamente tutelar interesses inéditos em um novel contexto social, deve-se conhecer a matéria objeto da valoração jurídica.
A vulneração no temário em foco dá-se pelo fato de que a incrível velocidade e complexidade dos progressos biotecnológicos não foi alcançada pelo Direito, vez que, notoriamente, as ciências jurídicas caminham de forma mais lenta que as ciências biomédicas. Não obstante, tal se agrava mais ainda na seara penal, que ostenta um delineamento técnico menos flexível que de outros ramos jurídicos, como o Direito Administrativo ou Civil(9).
Apesar disso, em nosso país, insiste-se na tutela penal, com pouco aprofundamento de conteúdo, erros técnicos, utilização de formas tipificadoras porosas, lastreando-se um Direito Penal simbólico, arbitrário e inseguro, que pode comprometer o avanço científico. De outra sorte, as próprias dependência e referência constante à seara administrativa estão a despontar que o Direito Administrativo é o mais adequado(10) para a disciplina da questão(11).
Portanto, há de se repensar referida legislação, tendo em vista que o mínimo ético para a convivência social que é o objeto de tutela penal culmina por converter-se em fator de crise de referência social na hipótese, na medida em que não se protege interesses palpáveis por meio de uma técnica adequada, consolidando-se uma mera ilusão penal, a qual, paternalistamente em nome de um incerto futuro, cerceia não apenas a liberdade humana como o progresso biotecnológico.
NOTAS
(1) ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção no genoma humano. São Paulo: IBCCRIM, 1999, p. 232 e ss.(2) BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 255.
(3) BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo..., cit., passim. No mesmo sentido, e.g., MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. Barcelona: Reppertor S.L., 1998, p. 92.
(4) Sobre a utilização destes, cf., e.g., ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene..., cit., p. 272 e ss., e HAMMERSCHMIDT, Denise. Transgênicos e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, passim.
(5) Cf., dentre outros, DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 75-79.
(6) BECHARA, Ana Elisa S. Liberatore S. Manipulação genética humana e direito penal. Porto Alegre: Zouk, 2007, p. 166.
(7) BECHARA, Ana Elisa S. Liberatore S. Manipulação genética..., cit. p. 166.
(8) SILVA SÁNCHEZ, Jesus María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch, 2002, p. 237.
(9) COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção ambiental, direito penal e direito administrativo. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, passim.
(10) Em face da maior eficácia social na escolha da via administrativa. Sobre isto, cf. REALE JÚNIOR, Miguel. Ilícito administrativo e o jus puniendi geral. In: PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor José Cerezo Mir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 95.
(11) Apesar de ao final não acolhida pela Corte, a referência à necessidade de estabelecimento de forte controle quanto às pesquisas embrionárias por um órgão administrativo central - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) –, por parte dos ministros do STF Cezar Peluso e Gilmar Mendes, no emblemático caso da ADIN 3510, sinaliza em direção ao pensamento exposto no texto.
Luciano Anderson de Souza, Mestre e doutorando em Direito Penal pela USP. Coordenador-chefe de Internet do IBCCRIM. Advogado criminalista
Fabiana Gonçalves Okai Advogada criminalista.
Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010
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