terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Artigo: O tráfico é feminino? é, sim senhora! a faceta inexplorada


A sociedade encontra-se, cada vez mais, imersa na problemática do tráfico de drogas, oriunda, em diversos momentos, pelo aparato midiático, processo em que as pessoas incorporam certas mensagens e crêem verdadeiras sem maiores reflexões, e este aparato acaba dando vulto, diuturnamente, em um combate de “guerra às drogas”. Esta ênfase é meramente proibicionista e, algumas vezes, implícita ou explicitamente, desemboca em alto rigor punitivo (v.g aumento expressivo na pena mínima imposta ao delito do art. 33 da Lei 11.343/2006), o que sobremaneira sedimenta o caráter repressivo nos seus mais variados aspectos.
Tal posição possui inúmeros seguidores, que por serem ‘fiéis’, e muitas vezes a maioria, acabam por tolher e depreciar o discurso inenarravelmente mais difícil de ser construído, que é justamente o viés oposto, i.e., voltado e preocupado com uma política criminal verdadeiramente compromissada com a margem, com o entorno, com o invisível, de modo a propor alternativas substitutivas à pena privativa de liberdade(1), com a capacidade de implementar esforços que estejam vinculados à realidade social, neste caso mais especificamente, com a realidade da dinâmica do tráfico de drogas.
O comércio das drogas ilícitas tem demonstrado que o tráfico deixou de ser uma atividade tipicamente masculina. Já faz algum tempo que estamos envoltos com a problemática da inserção das mulheres no tráfico de drogas e de seu aumento desmedido neste tipo de delito(2). Acerca da seleção realizada pelo direito penal, trazemos como exemplo ilustrativo desta realidade, a situação atual das mulheres que tem incrementado a Penitenciária Feminina Madre Pelletier em Porto Alegre/RS(3), o que inclui uma série de fatores, os quais apenas acabam sendo passíveis de elucidação através da aproximação desta realidade, bem como com o contato direto com estas mulheres que povoam o sistema carcerário gaúcho.
A dolorosa e triste realidade que presenciamos, demonstra a modificação dos tipos de delitos que vêm sendo cometidos pelas mulheres encarceradas, de modo que, se torna possível afirmar que, tal incremento, dentro de alguns fatores, é fruto da alternativa de sobrevivência que acaba sendo ofertada em comunidades tipicamente carentes, bem como o uso destas mulheres para a atividade remunerada de “mulas” (v.g,o levar a droga para dentro de presídios). Essa presença numérica significativa, das mulheres inseridas na dinâmica do tráfico de drogas, faz emergir a necessidade de estudos(4)que se debrucem acerca desta realidade.
Insta mencionar que tal situação encontra-se agudizada e, provavelmente, da forma repressiva como se vem tratando esta situação, nós tenhamos, em pouco tempo, uma população ainda mais significativa, porquanto superior ao que já existe hoje. Em meados de julho de 2009, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier encontrava-se com uma população de 530 mulheres encarceradas, sendo que, desta imensa quantidade, desponta-se o enclausuramento feminino por tráfico de drogas (cerca de 76,23%)(5).
‘Retribuição’ destinada ao tráfico de drogas, como única alternativa, reproduz o proibicionismo desenfreado e contribui para a demonização, cada vez mais frequente, daquele que comete o delito de tráfico de drogas, ocasionando mazelas irrecuperáveis para aquele(a) que cumpre pena por tal delito. É emergente, senão para ontem, que os operadores do direito ‘saiam do etnocentrismo’, o que implica relativizar e poder olhar o outro, mas não apenas dando-lhe visibilidade pertinente e adequada, mas sim olhar o outro no seu contexto – que não o nosso – e possibilitar que essa falta de visão, como deficiência visual seja aniquilada.
A política de ‘guerras às drogas’, que vem sendo crescentemente veiculada pela mídia, por si só, demonstra o quanto o proibicionismo e a repressão fracassaram, e o grau de seu reflexo: a permanência e aumento do tráfico de drogas e a continuidade e incremento do uso que se faz delas. E, é este contexto que tem angariado cada vez mais adeptas femininas na estrutura do tráfico de drogas, em proporção suficientemente escandalizadora. Se a vendida concepção de ‘Tolerância Zero’, difundida e aplicada pelos Estados Unidos e comprada pelo Brasil, não conseguiu, nem cá nem lá, minimizar o problema da criminalidade, é mais que chegada a hora de modificarmos as nossas posturas. Chegou à hora de modificarmos o duelo: redução de danos versus repressão incorporada pela Lei 11.343/2006, e ‘tentar’ equilibrar a balança desproporcional instituída pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas – SISNAD.
Notável, então, a emergência de estudos voltados para esta questão, e descortinar este universo, ancorados sob a visão de contenção contra o viés punitivista, quando a capacidade de repressão já se encontra em vias de amputação – dada que fadada ao fracasso e reprodutora de rememoração do delito – o que é, por si só, maior do que a pena pode ‘ofertar’.
Imperioso é o momento de reflexão que possibilite (re)pensarmos a aplicabilidade do estatuto repressivo do tráfico de drogas, propondo alternativas outras que se adéquem aos fenômenos sociais. O funcionamento da Lei 11.343/2006 mostrou a que veio: selecionar, estigmatizar, e extirpar a liberdade de pessoas de baixo ou nenhum poder aquisitivo (excluídos), deixando mais ‘fora’ ainda, se é que isso é possível, da sociedade – na qual não vivem senão à margem (marginalizados).
E como se tudo isso não fosse o suficiente, permanece a problemática da quantidade da droga apreendida, que fica à mercê da discricionariedade do juiz quando da aplicação da pena. Uns consideram muito 100g de, por exemplo, o famigerado crack, e acabam dando penas extremamente severas excluindo qualquer possibilidade de benefício diante da estúpida hediondez. De outro lado, encontramos um juiz mais adequado com a realidade e os fenômenos sociais, que vê nestas mesmas 100g de droga, um ser humano, por detrás das palavras de uma denúncia e com parcas condições financeiras, a quem não podia se ‘esperar’ uma conduta extraordinariamente diversa.
Não resta outra conclusão: a face e a contraface estão estabelecidas, agora resta a nós, a dura tarefa e ‘a duras penas’, minimizar os efeitos desta desproporcionalidade e admitir uma única face: a mais humana e menos demonizadora possível, pois o endurecimento penal e o proibicionismo desenfreado já tiveram a sua chance de reduzir o problema, e, desta chance mostraram o quão ineficazes e inócuos foram.
NOTAS
(1) Neste sentido, consultar o Projeto Pensando o Direito do Ministério da Justiça.
(2) Um exemplo antropológico desta inserção crescente podemos encontrar no livro de Celso Athayde MV Bill Falcão Mulheres e o Tráfico.
(3) Estudo que vem sendo desenvolvido no Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS, com as mulheres encarceradas por tráfico de drogas na Penitenciária Feminina Madre Pelletier em Porto Alegre/RS.
(4) Este mesmo apontamento já havia sido feito no trabalho intitulado:Mulheres e prisão: a experiência do Observatório de Direitos Humanos da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, livro que resultou de projeto criado e executado pelo Instituto de Acesso à Justiça – IAJ, com o financiamento do governo federal.
(5) Dados disponibilizados pela Penitenciária Feminina Madre Pelletier em Porto Alegre/RS para a viabilidade da Dissertação de Mestrado.


Thaís Zanetti de Mello
Mestranda em Ciências Criminais pela PUC/RS,
Especializanda em Ciências Criminais pelo IPA,
Especializanda em Filosofia pela PUC/RS,
Graduada em Direito pela FADIPA
Conselheira da comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre – CCPOA





MELLO, Thaís Zanetti de. O tráfico é feminino? É sim senhora! A faceta inexplorada. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 205, p. 14-15, dez., 2009.

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