Acabo de receber dos amigos Pierre Amorim e Geraldo Prado um instigante trabalho doutrinário do combativo e brilhante professor Aury Lopes Jr., intitulado "Teoria Geral do Processo é danosa para a boa saúde do Processo Penal". Em que pese estarmos voltados para a Copa do Mundo de futebol, não resisti e resolvi tecer algumas considerações tópicas sobre tal estudo. Acredito que o meu temperamento polêmico tenha ficado aguçado pela idade mais avançada. Por outro lado, consigno que tal comportamento pode ser justificado pela importância que o autor gaúcho tem no cenário jurídico nacional.
Por amor à brevidade e levando em conta a já referida preocupação futebolística, vou ser sucinto e tópico, refutando as premissas explicitadas no estudo do colega Aury Lopes Jr. Ficará assim, uma verdadeira "minuta" para servir de modelo para um trabalho futuro e mais elaborado. Eventual irreverência de minha parte fica desde logo amparada pelo Estatuto do Idoso.
Com todo respeito aos mestres Carnelutti e Aury Jr., não acho que o Direito Processual Penal seja "irmão" do Direito Penal e muito menos que sejam "ciências". Caso contrário, quem seria o pai ? Aqui, nem a Teoria da Evolução de Darwin poderia explicar. Nem me animo a consultar o meu atual guru, o cientista e biólogo Richard Dawkins. Talvez o Direito Penal tenha alguma ascendência cronológica em face do Direito Processual Penal, pois este só foi criado pelo homem porque ele antes criou o Direito Penal. Como negar o caráter instrumental do Direito Processual Penal? Ele só existe para permitir a aplicação democrática do Direito Penal, em casos concretos. Desta forma, a "relação de parentesco" deve ser outra: o pai (substantivo) é o processo em geral e os irmãos (adjetivos) são os especiais (Penal, Civil e Trabalhista).
Pode-se até não gostar da Teoria Geral do Processo, mas que ela existe, existe. Fui até a minha biblioteca e contei 51 livros com este título. Destes, 22 são de autores estrangeiros. Isto deve ter algum sentido.
Por outro lado, ainda em termos de refutação geral, cabe salientar que assim como o Direito Civil é obedecido, como regra, na sociedade, vale dizer, as pessoas cumprem as normas materiais sem precisar do processo, o mesmo pode ocorrer com o Direito Penal, pois as pessoas obedecem, em regra, à norma jurídica que está implícita na forma de tipificar as condutas pela Lei Penal. Vale dizer, as pessoas geralmente obedecem ao Direito Penal e não roubam, não estupram, não matam etc, da mesma forma que pagam suas dívidas, respeitam a posse e propriedade dos outros. O chamado "princípio da necessidade" também pode reger o Processo Civil, como ocorre nas chamadas "ações constitutivas necessárias" (anulação de casamento, interdição e hipóteses de jurisdição voluntárias que, para os mais modernos, seria jurisdição mesmo).
Assim, o fato de não se poder aplicar a pena senão através do processo penal não o distingue tanto do processo civil e do trabalho. Também só posso recuperar a minha propriedade através do processo, já que é vedado o exercício arbitrário das próprias razões, apenas para dar um exemplo dentre tantos. A diferença que pode haver é a existência do princípio dispositivo. Entretanto, ele existe na ação penal de iniciativa privada e é mitigado na ação civil pública.
Vamos agora à contestação tópica, questionando as inteligentes premissas colocadas pelo professor Aury Jr.
a) Destacou o referido mestre: "no Processo Penal, forma é garantia e limite de poder, pois aqui se exerce o poder de punir em detrimento da liberdade".
Primeiramente, Aury esqueceu que o Direito Processual Penal abriga também ações penais não condenatórias, onde se busca assegurar o direito de liberdade: ação de Habeas Corpus (declaratória, desconstitutiva ou mandamental), ação de revisão criminal, reabilitação na execução penal e mandado de segurança contra ato jurisdicional penal). Depois, julgo que não se pode negar que também, no processo civil e do trabalho, a legalidade das formas dos atos e procedimentos processuais são maneiras de se limitar o poder do Estado-Juiz na satisfação da pretensão do autor (ou composição da lide, como preferem alguns).
b) Disse o professor gaúcho que "precisamos abandonar a teoria da ação", sendo que, mais adiante, mitiga a radical afirmação, esclarecendo que "os conceitos de autonomia e abstração (da ação) têm que ser repensados", sendo preciso elaborar uma "teoria da acusação".
Não vejo possível uma "teoria da acusação" no Habeas Corpus, na ação de revisão criminal, na reabilitação e no mandado de segurança em matéria penal. Por outro lado, acho estranho que concebamos uma ação penal sem teoria. Não vamos pensar ou refletir sobre ela ?
Finalmente, o caráter abstrato da ação (inclusive a penal) já foi mitigado, de há muito, por Enrico Liebman, estando positivadas no direito brasileiro as condições para o regular exercício da ação penal, inclusive a justa causa (suporte probatório mínimo para ação penal condenatória).
c) É um erro histórico dizer que as condições da ação no Processo Penal são o interesse e a possibilidade jurídica do pedido, se aqui a regra é a necessidade, afirmou Aury Jr.
Primeiramente, nada tem de histórico neste suposto erro. Por outro lado, não há erro algum, em meu entendimento, é claro. Volto a dizer, existem ações penais que não são condenatórias, onde o chamado "princípio da necessidade" não tem pertinência. Ademais, até bem pouco tempo, tínhamos a falta de interesse de agir diante da inarredável prescrição retroativa pela pena ideal ou em perspectiva. Tudo depende da legislação de cada país. Não tenho dúvida de que um pedido de pena de açoite ou morte (salvo militar em tempo de guerra) seria juridicamente impossível, tornando dispensável a coleta de prova ou a realização de outros atos processuais. Realmente, a exigência de suporte probatório mínimo para o regular exercício da ação penal condenatória nada tem a ver com a possiblidade jurídica do pedido, sendo uma quarta condição para o regular exercício desta ação. A quinta condição seria a "originalidade", vedando-se que o mesmo direito de ação seja exercido mais de uma vez (não litispendência e coisa julgada). Tanto a ação penal como a ação civil e a ação trabalhista têm que ser originais.
d) Não existiria a lide penal, segundo o trabalho comentado.
Tenho sustentado, em vários de meus estudos, que o essencial para que exista o processo (como categoria autônoma) é a pretensão e não a lide. No processo civil, trabalhista e penal há pretensão, no sentido de que o autor pede ao juiz que prevaleça o seu interesse em detrimento do interesse do réu (manifestação de vontade, exteriorizada pelo pedido). O conceito de pretensão, formulado por Carnelutti, não pressupõe a existência de um credor e de um devedor e nem de qualquer relação jurídica de direito material.
e) O conceito de jurisdição tem outra dimensão no processo penal, pois seria não um poder-dever, mas sim uma garantia fundamental, sendo aqui mais sensível a garantia do juiz natural, segundo sustenta o mencionado autor.
Entendo que a existência de um poder-dever de prestar jurisdição em nada é incompatível com a garantia fundamental, ambos assegurados na Constituição da República. Tudo não passa de uma predominância de escopo e só confirma a existência de jurisdição e juiz natural nas várias espécies de processo (penal, civil e trabalhista).
f) Agora digo eu: a maior ou menor atuação do juiz no campo probatório no processo penal, civil ou trabalhista não infirma a existência de um conceito unitário de processo. Aliás, no Direito brasileiro, temos regra expressa no sentido de que o juiz penal pode produzir prova de ofício, desde que supletivamente à atividade probatória das partes. Aliás, este é um dos temas hoje preferido da Teoria Geral de Processo. Há inúmeros livros em nossa pátria tratando do poder instrutório do juiz no processo civil e penal. Para que não pensem que nós, do processo penal, sejamos ingênuos, acreditando que se possa chegar à verdade absoluta, sugerimos substituir o nome do princípio da busca da verdade real por "princípio da busca do convencimento do juiz".
g) A circunstância de o ônus da prova ser distribuído diversamente no processo penal não nega a Teoria Geral do Processo. Até porque, temos que tratar de temas gerais, como prova, ônus e preclusão. Sempre sustentamos que, na ação penal condenatória, o ônus da prova é todo da acusação. Neste sentido, nosso estudo doutrinário foi pioneiro. Entretanto, isto em nada dificultou a elaboração de meus outros textos, todos partindo de conceitos formulados pela Teoria Geral do Processo. Por derradeiro, ainda que assim não fosse, não esqueçamos, mais uma vez, das ações penais não condenatórias, onde a distribuição do ônus da prova pode ser igual ao processo civil.
h) Juiz natural e imparcial. São conceitos comuns aos vários ramos do Direito Processual. Se há ativismo judicial aqui ou acolá é uma questão de distorção prática, que em nada se relaciona com a Teoria Geral do Processo.
i) As expressões "fumus boni iuris" e "periculum in mora" podem ser usadas, sim, nas medidas cautelares penais. São expressões tradicionais no Direito há séculos, e não cabe traduzi-las literalmente. Agora, se elas incomodam, podemos usar outras com sentido semelhante, desde que demonstrem a urgência da medida e que ela não é desarrazoada, tendo em vista a prova produzida. Em que as velhas expressões de parte da doutrina (não da lei processual penal) negam a existência da Teoria Geral do Processo?
j) A existência ou não do chamado "poder geral de cautela", no processo penal, em nada infirma a Teoria Geral do Processo. Tanto é que encontramos autores que sustentam a sua existência no processo penal, mormente quando a medida não afetar direitos individuais fundamentais, assim como há autores que a negam no processo civil ou do trabalho, mormente quando a medida afetar direitos individuais fundamentais.
k) O fato de a revelia, no processo penal, não autorizar a presunção de veracidade dos fatos alegados na denúncia ou queixa em nada prejudica a Teoria Geral do Processo. No processo civil, a revelia também não leva a tal presunção, quando o direito for indisponível, quando a parte for incapaz, quando um litisconsorte unitário contestar, etc. Aliás, de lege ferenda, o próprio legislador deveria afastar tal presunção no processo civil, sendo certo que ela não existe em muitos processos civis de outros países.
l) A existência ou não de efeito suspensivo do recurso especial ou extraordinário em nada colide com a Teoria Geral do Processo. Ao contrário, a existência destes recursos tanto no processo civil, como no processo penal e do trabalho, só confirma a Teoria Geral do Processo. O estudo destes recursos, seus requisitos de admissibilidade, seus efeitos, etc. partem de conceitos comuns. Há países que não têm recursos semelhantes e os que têm podem ou não dar efeito suspensivo, dependendo das suas Constituições. No Brasil, é importante notar, a lei específica negava efeito suspensivo a estes recursos indistintamente.
Note-se que, hoje, os juízes já estão concedendo aos réus presos e condenados em segundo grau os benefícios da Lei de Execução Penal. Para não se reconhecer aí uma verdadeira execução provisória, chega-se ao absurdo jurídico de aplicar medidas da execução penal a quem está preso preventivamente (sic). Talvez seja apenas uma questão de semântica.
m) A existência ou não de nulidades relativas no processo é tema da Teoria Geral do Processo, que deve atentar para as peculiaridades do processo civil, penal e do trabalho. Aliás, a teoria das nulidades dos atos jurídicos é tema da própria Teoria Geral do Direito. A exigência de demonstração de prejuízo nas nulidades relativas é questão colocada pela própria lei processual penal. Gostar dela ou não gostar depende de cada um. Isto não é culpa da Teoria Geral do Processo, pois o nosso Código de Processo Penal é de 1941 e foi elaborado por professores de Direito Penal. Naquela época, nem se falava em Teoria Geral do Processo.
Como disse no início, espero ter mais tempo, em um futuro breve, para tratar dos temas acima com mais profundidade e seriedade. Estou premido pelo jogo da seleção brasileira de hoje . Rogo que o colega Aury Lopes Jr. não fique magoado com o meu dissenso. Poucas vezes estive com ele pessoalmente, até porque estava em "longo retiro ecológico", mas o seu caráter democrático, que se reflete em toda a sua extensa obra, me animou a polemizar com ele. Como eu teria gostado que professores da geração passada tivessem tido o trabalho de polemizar comigo.
De qualquer forma, se conseguirem acabar com a Teoria Geral do Processo (usei a expressão repetidamente de propósito), eu me sentirei estimulado a sustentar a N.T.G.P., ou seja, a Neo Teoria Geral do Processo. Hoje, basta colocar a expressão "neo" que o velho se torna novo. Depois de assistir à banda de rock Titãs e ao tropicalista Caetano Veloso tocarem de terno e gravata no Canecão (antiga casa de shows no Rio de Janeiro), nada mais me surpreende nesta perspectiva. Dizem até que a utopia de uma sociedade igualitária e fraterna é "coisa de museu". Acho que já estou em condições de ser "tombado" e, como "ave rara socialista", temo vir a ser tutelado pelo Ibama.
Afrânio Silva Jardim é procurador de Justiça aposentado, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj (mestrado e doutorado), mestre e livre docente.
Revista Consultor Jurídico, 04 de julho de 2014.
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