O número baixo de inquéritos policiais abertos no Brasil e o consequente montante reduzido de ações propostas pelo Ministério Público coloca em discussão várias maneiras de melhorar a investigação e a ação penal no país.
Segundo informações publicadas pelo jornal Folha de S.Paulo, obtidas a partir da Lei de Acesso a Informação, a Polícia Civil de São Paulo só abre inquéritos para investigar um em cada dez roubos registrados. Entre 2004 e 2013, apenas 9,3% do total de boletins de ocorrência desse tipo de crime resultaram na abertura de investigação criminal. Com isso mais de 2 milhões de casos foram deixados de lado no período.
Sobre pessoas desaparecidas, a Polícia Civil de São Paulo registrou mais de 18 mil boletins de pessoas desaparecidas na capital em 2012 e 2013, mas em apenas 51 casos os policiais instauraram inquéritos para investigar as circunstâncias dos sumiços e fazer buscas — ou 0,3% do total.
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio (foto) esses dados demonstram que a polícia investigativa precisa de mais estrutura para agir. “O que precisamos fazer é aparelhar a Polícia Civil, aparelhar a inteligência principalmente, e também remunerar condignamente e melhorar a estrutura da carreira”, afirma.
Já o ministro do STF Gilmar Mendes comenta que é compreensivo, em casos de pequenos crimes, bagatelas, que ocorra a ausência de um processo investigatório individualizado, mas que isso não é tolerável em crimes mais sérios como roubos e homicídios.
“Muitas vezes não há sequer a abertura de inquérito. Isso foi encontrado, por exemplo, pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça] em Alagoas em relação a homicídios. Ou quando o inquérito era aberto não tinha prosseguimento. Isso demonstra todo um sistema em colapso. É uma situação preocupante não só em São Paulo ou Alagoas, mas em todo o país”, comenta.
Para o ministro, o enfrentamento desses problemas precisa acontecer com a modernização do sistema de Justiça como um todo, incluindo a polícia, o Ministério Público e a Justiça e todo seu aparato.
Controle do MP
Mendes também ressalta que há condições previstas e prontas para uso que poderiam melhorar essas situações no país, como o controle externo do Ministério Público.
“Nós temos na Constituição a previsão do controle externo do Ministério Público. Há o CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público], que pode coordenar essas ações com o CNJ. E por parte dos secretários de Justiça também há boa vontade para articular essas ações. O Ministério da Justiça certamente deveria fazer mais nessa área. Mas muitas coisas que são descontinuadas, não tem prosseguimento”, afirma.
Já o ministro Marco Aurélio defende ações como o acesso do Ministério Público aos sistemas de registro de Boletins de Ocorrência e acompanhamento de inquéritos penais, mas tem restrições.
"O MP pode e deve requerer essas informações. É inconcebível que integrantes do Ministério Público coloquem uma estrela no peito e um revólver na cintura e investiguem. Isso é inconcebível, é uma concentração de poder. O Ministério Público, sendo ele o titular da ação penal, a tendência será ele jogar no lixo o que não interessar à investigação, à persecução criminal, por isso precisamos nos afastar dessa ótica da concentração de poderes. O Ministério Público pode acompanhar os inquéritos penais, deve pedir diligências, fiscalizar a polícia. O que é inconcebível é que ele se arvore como investigador”, comenta.
O ministro Gilmar Mendes (foto) também defende que não se deve invadir a competência dos órgãos e, sim, exercer ações de forma compartilhada e cooperativa. Mas para isso ele destaca a necessidade de uma coordenação.
“Há muitos estados com deficiências financeiras, por isso a necessidade de um modelo de suprimento de recursos e para isso a União deveria participar. A grande responsabilidade na questão da segurança pública hoje no Brasil é da União. Em termos de presídios, por exemplo, temos hoje R$ 1 bilhão que não são gastos e estão parados no Fundo Penitenciário. Temos todo o instrumentário institucional para agir, falta a articulação”, diz.
Realidade dura
Os inquéritos policiais no Brasil têm várias deficiências como a falta de rotinas normatizadas, na grande parte dos estados, sobre os procedimentos de registro e instauração de inquérito. Também há muitas formas de registrar uma morte violenta ou suspeita e nem todas as classificações resultam em instauração de inquérito e, especialmente, inquérito por homicídio.
Quem relata isso é a juíza da 24ª Vara de Porto Alegre, Tais Schilling Ferraz. Hoje ela é convocada no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em auxílio à 5ª Turma, e foi coordenadora do Grupo de Persecução Penal da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp) de julho de 2010 a julho de 2013, além de conselheira do CNMP entre 2009 e 2013. A Enasp reúne vários órgãos, como CNMP, CNJ e Ministério da Justiça.
Ela participou da equipe da Enasp que fez um levantamento nacional sobre os procedimentos que antecedem os inquéritos nos casos de homicídio. Foi um trabalho que auxiliou a chamada Meta 1 da Enasp — isto é, identificar as causas de subnotificação nos crimes de homicídio, permitindo o direcionamento de esforços específicos para sua eliminação, de forma que a cada morte violenta ou suspeita corresponda um inquérito.
Um dos pontos verificados na pesquisa nacional com policiais e com o MP foi que os agentes não se comunicam adequadamente durante a investigação. “Delegados e investigadores pouco conversam com os peritos. E os peritos também pouco se conversam. Um exemplo verificado foi que ao fazer o exame necroscópico, na maior parte dos estados o médico-legista não está de posse do registro de ocorrência realizado pela polícia judiciária ou das conclusões da perícia de local de crime, mesmo no caso de perinecroscopia. O grande problema disso é que muitas vezes o legista deixa de avaliar, através da necropsia, eventual hipótese, levantada pelo investigador do local, que poderia auxiliar na solução da investigação”, detalha.
Ela é a favor do acesso da Promotoria aos sistemas de registro de BOs e o acompanhamento de inquéritos penais, bem como uma mudança nas rotinas e, principalmente, de estruturação das polícias civis. O levantamento nacional mostrou essa necessidade, incluindo sobre a Meta 2, que tratava da conclusão dos inquéritos policiais por homicídio instaurados há mais tempo.
“No levantamento que fizemos juntamente com a divulgação dos resultados da Meta 2 havia estados há mais de 10 anos sem fazer concurso ou sem aumentar seus quadros de investigadores, delegados, peritos. Em alguns estados não há quase nenhum perito no interior. A falta de material de trabalho é gravíssima e mesmo quando há fornecimento de equipamentos pelo Ministério da Justiça, ocorrem situações em que ficam sem uso porque falta quem os opere ou falta condições elétricas ou de rede para o funcionamento”, comenta.
Tais conta que no Rio de Janeiro já há um termo de cooperação para o Ministério Público ter acesso aos sistemas de registro de BO e acompanhamento de inquérito policiais, mas vê resistência para isso ser adotado em outros locais. Além disso, a juíza também defende a criação de rotinas específicas, como a de investigação de local de crime, de registro de ocorrência e instauração de inquéritos, a rotina da cadeia de custódia da prova e rotinas de comunicação. "Um dos grandes problemas que enfrentamos é justamente não falarmos a mesma língua em todo o país em matéria de registros criminais”, diz.
Outra providência necessária em sua visão é a classificação adequada dos crimes de homicídio. “Mortes violentas ou suspeitas não devem ser classificadas como falecimento, encontro de cadáver, resistência seguida de morte, e sim como homicídios. Se depois, durante a apuração, se descobrir que não foi um homicídio, faz-se a reclassificação, e não o contrário. A forma de classificar o fato tem inúmeras consequências práticas e é determinante para a adequada investigação”, explica.
Prescrição e seleção
O professor e promotor de Justiça em Minas Gerais André Luís Alves de Melo também aponta outras dificuldades sérias no Brasil que deveriam ser atacadas, como a prescrição de processos.
“O número de prescrições é enorme, inclusive com recursos protelatórios, mas o curioso é que não há pesquisa sobre isto, mas seria um escândalo. O processo perde a finalidade de buscar uma sanção ou uma verdade processual, e passa a ser meio de prescrição em razão do volume e mantém o mercado jurídico. Veja, em uma Vara com 7 mil processos, temos apenas 700 execuções penais, logo há um gargalo que tem sido ignorado”, comenta.
Melo ainda afirma que alguns promotores apenas “denunciam” e não se preocupam com a tramitação dos processos. “Não basta denunciar, pois a pauta de audiências judiciais de instrução gira em torno de 60 por Vara mensalmente, logo não adianta lotar a secretaria de denúncias criminais”, explica.
Para minimizar esse problema específico ele é a favor do aumento dos acordos penais, mas vê dificuldades porque muitos defensores preferem que os casos acabem prescritos. “Os acordos penais poderiam agilizar como no caso de porte de arma de fogo. Mas não é algo banalizado como a transação penal no juizado especial. O promotor teria que denunciar e o acordo seria, em regra, no mínimo previsto para o tipo penal. Em geral, 95% das condenações são próximas ao mínimo legal, então as discussões no processo penal geralmente são apenas para retardar e conseguir prescrição”, explica.
Sobre o acesso do Ministério Público aos sistemas da polícia, Melo conta que em Minas Gerais os promotores têm senha para acessos ao o sistema da PM, mas não têm acesso ao sistema da polícia civil. Porém ele pondera que mesmo numa situação com maior número de inquéritos o Ministério Público não teria estrutura ou mesmo necessidade de abrir em todas as ocasiões ações penais, como em crimes menores. Por isso ele defende também a criação de critérios para a abertura de ações penais.
“A questão não é ‘mais ações penais’, mas ‘melhores ações penais’, e para isto precisamos fazer a triagem, como Roxin [jurista] prega na Alemanha. Lá mesmo vigorando a obrigatoriedade da ação penal, o promotor arquiva 60% dos inquéritos com base no princípio constitucional implícito da proporcionalidade, ou seja, faz um controle das prioridades”, conta.
Ele conta que, na França, o MP também faz controle das prioridades. Na Itália, pequenos furtos dependem da representação da vítima, ou seja, esta participa. Em Portugal e Espanha também os pequenos furtos fazem triagem por meio de critérios de representação da vítima ou pelo número de condutas criminais do suspeito.
“Hassemer, jurista alemão, entende que a investigação é obrigatória, e caberia ao MP fazer a triagem das prioridades. No Brasil invertemos, a investigação é facultativa, e se a polícia remete ao MP, então é ele que fica obrigado. Além dos inquéritos não instaurados, temos o fato de que a PM não atende a todos os chamados pelo 190, ou seja, temos um Estado Policial em vez de Estado Democrático de Direito, esta seletividade parece que precisa ser discutida, isto é o debate atual na Europa”, complementa.
Comendo na mão
Para o jurista e professor Lenio Streck (foto) a estrutura de inquérito no Brasil e a consequentemente investigação é arcaica. Ele também considera que hoje mais de 80% dos processos judiciais são produtos de autos de prisão em flagrante, portanto, sem investigação. “Na Câmara em que atuei durante 15 anos, a 5ª Criminal do TJ-RS, esse percentual chegou a 92% no ano passado”, destaca.
Outro problema para Streck é a seletividade nos inquéritos que chega a ser social. “Por falta de controle, a polícia escolhe o que ‘tocar para a frente’. E o Ministério Público, titular da ação penal, acaba ‘comendo na mão’ da polícia. E não estou descobrindo a pólvora. Isso é do século passado. Não devemos, entretanto, colocar a culpa só na polícia. O Estado deve saber que tipo de polícia quer. Parece que não quer uma polícia bem aparelhada. Mas isso também não seria suficiente. O titular da ação penal deveria ter o amplo controle do que se deve investigar”, comenta.
Sobre o controle da atividade policial pelo Ministério Público, ele é favor, mas vê dificuldades para sua implantação porque sequer se sabe como isso poderia ser efetivado. "Quando digo que há pouca inteligência, falo da questão da circulação de informações. Na era da informática, não é possível que o MP tenha que clamar para saber quantas ‘reclamações’ o povo está fazendo nos balcões dos órgãos de segurança”, opina.
A respeito da estrutura do Ministério Público para atuar em um cenário de aumento do número de inquéritos penais, Streck afirma que essa questão se insere na crise da função e da estrutura do “sistema” e do mito da obrigatoriedade da ação penal.
“Enquanto o sistema está colapsado, dezenas ou centenas de milhares de ações penais inócuas são intentadas. Tem sentido movimentar a máquina por um furto de fios de cobre avaliados em R$ 30? Isso é uma reprodução perversa de um sistema que usa o direito penal como fator de exclusão e etiquetamento. Estamos brincando de combate ao crime, quando processamos cotidianamente milhares de ladrões e pequenos estelionatários por quantias irrisórias e, ao mesmo tempo, aceitamos que, na sonegação de tributos, a ausência de prejuízo seja fator de isenção de pena. O que é mais grave? Sonegação ou furto? Quantas condenações por lavagem de dinheiro houve desde a lei em 1998? Vamos comparar esses números com as condenações por furtos qualificados. Já fiz isso. É de arrepiar. Aliás, as penas desses dois delitos parecidas. Isso tudo é sério? Parte do Ministério Público ainda acredita na obrigatoriedade da ação penal”, discorre.
Entre as providências para resolver essas situações Streck defende transformar ações penais que tratam de crimes contra o patrimônio sem violência em ação penal condicionada à representação e a criação de um novo Código Penal.
“A lei de Contravenções Penais deveria ser declarada não recepcionada urgentemente. Um novo Código Penal deve ser feito. Vamos falar de uma teoria do bem jurídico constitucionalmente adequado? O nosso Código é de um tempo em que Tício, Mévio e Caio eram os protagonistas, em uma sociedade liberal-individualista. Ou proto-liberal. Hoje os crimes que devem merecer o cuidado por parte da polícia e Ministério Público são os de perfil transindividual. Um novo Código penal deveria cuidar disso, sem galerias lotadas e sem corporativismos. Um novo Código de Processo deve tratar da nova estrutura de investigação”, defende.
Como modelos de comparação ele cita o alemão, o da Costa Rica ou da Colômbia, que poderiam servir de base, principalmente da relação Ministério Público-Polícia Judiciária e Magistratura. Para ele, é preciso ficar claro quem deve fazer o quê. "Por exemplo, se o Ministério Público tem poder de investigar, deve ter a obrigação de buscar provas também em favor do indiciado”, exemplifica — clique aqui para ler mais.
Sobrecarga de atividades
O criminalista Alberto Zacharias Toron (foto), do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados, cita também como dificuldade a quantidade de atribuições que a Polícia Civil possui.
“Essa é a velha preocupação de um abolicionista, o Louk Hulsman, que até propõe o fim do Direito Penal. Ele diz que mesmo que não se queira acabar com o Direito Penal, para um sistema que já se apresenta sobrecarregado, não se pode colocar novas matérias debaixo da proteção penal porque isso implica em uma sobrecarga do sistema. Eu observo que um dos aspectos desta eventual dificuldade da polícia apurar ou iniciar a apuração dos fatos possa ter a ver com a sobrecarga de atividades”, afirma.
Para Toron, a Polícia Civil deveria se incumbir apenas de atividades realmente importantes para a segurança pública. Quanto ao controle externo da Polícia Civil pelo Ministério Público ele aponta que já há ações nesse sentido também no Estado de São Paulo, mas ele questiona sua eficácia até pela estrutura do MP.
“Em São Paulo temos o Dipo [Departamento Técnico de Inquéritos Policiais] que é um órgão especializado no controle da polícia. O próprio juiz pode ter acesso junto com o Ministério Público a dados policiais. Eu acho que a polícia nem se nega a dar esse acesso ao Ministério Público. O que ocorre são dificuldades materiais, ligadas à impossibilidade da investigação e à impossibilidade de cumprir por falta de meios”, afirma.
Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2014.
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