“Quem sofre diretamente com a corrupção é o povo, e este é quem tem a maior legitimidade em julgá-la, até porque o tribunal popular tem características próprias que facilitariam uma correta resposta penal.” A frase, que justifica a ideia de que os crimes de corrupção deveriam ser julgados pelo Tribunal do Júri, corte que hoje aprecia apenas crimes dolosos contra a vida, é do procurador de Justiça do estado de São Paulo e ex-corregedor-geral da capital Edilson Mougenot Bonfim (foto).
Autor de livros de Direito Processual Penal principalmente na área do Tribunal do Júri, ele concedeu entrevista à Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso (FESMP-MT) e à Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri), feita por Antônio Rodrigues de Lemos Augusto.
O entrevistado também atacou a proposta de judicialização extrema das provas no processo penal e enfatizou que a sociedade não foi favorecida com as reformas no procedimento do Tribunal do Júri, em 2008. Leia a entrevista:
A reforma do Júri de 2008 completa seis anos. O que a jurisprudência nos mostra em relação à eficácia das mudanças?
Edilson Mougenot Bonfim — Para ser absolutamente técnico na resposta, penso ser cedo para mensurar “adequadamente” eventuais acertos ou danos com as mudanças. Mas uma coisa é certa: com o interrogatório sendo colocado como último ato do processo — característica exclusiva do processo penal brasileiro para crimes relevantes —, com a proibição de se aludir ao uso das algemas pelo réu ou às decisões prolatadas “como argumento de autoridade” — expressão mais ampla que a imaginação do legislador ao criá-la — e pelo aumento de muitas outras hipóteses de nulidade, ouso dizer que está muito mais difícil se chegar à verdade e, uma vez que consigamos, muito mais fácil anular-se o julgamento. Daí, a conclusão é óbvia: Nem chegamos à verdade com a eficiência que deveríamos e, uma vez tocando-a, andamos na “esteira rolante” da Justiça, que, pela nulidade declarada, nos fará percorrer os mesmos caminhos, assim, indefinidamente. É possível, fazer um bom elogio da mudança?
A reforma do Código de Processo Penal, em tramitação no Congresso Nacional, pode trazer quais impactos ao Tribunal do Júri?
Edilson Mougenot Bonfim — Na impossibilidade de analisar todo o texto da pretendida reforma e suas eventuais implicações no procedimento do júri, respondo com um argumento em bloco, sintetizador do quanto penso a respeito: o Código de Processo Penal já está decantado pela doutrina e jurisprudência. O que era inconstitucional, já foi declarado pelo STF. Faz sentido, mudar-se um texto bem escrito, harmônico, de redação muito melhor do que qualquer das novas leis nascidas no passado recente, por uma criação jurídica sem passado — basta dizer que nunca passou pelo crivo da constitucionalidade — e, possivelmente, sem futuro, pelo montante de aberrações que já mostrou no leito de sua concepção? A inflação legislativa brasileira, a legislomania, a urticária de legislar que caracteriza o Brasil, tem produzido monstrengos disformes e pluriformes, a que chamamos de lei, por pura obediência à ordem democrática.
Quais alterações o senhor defende para o processo penal em relação ao Tribunal do Júri?
Edilson Mougenot Bonfim — Não seria reforma de texto, exatamente — evidentemente que poderia fazer alguma sugestão isolada, ou tópica —, mas um investimento na formação dos profissionais que nele atuam. A melhor lei, na mão de um mau cirurgião, de nada adiantará. A lei torta, como esta que temos, nas mãos de bons cirurgiões, ainda opera milagres. E, no texto, o que se mudaria? Retiraria essa réplica e tréplica de uma hora, e voltaria ao modelo anterior, aumentando-se o tempo da fala inicial e diminuindo-se o tempo da réplica e tréplica; suprimiria essas obtusas causas de nulidade do artigo 478, inciso II, do CPP; retiraria o “convite à absolvição”, que se caracteriza o quesito “o jurado absolve o réu”. De mais, não trato, por despiciendo, porque se mudasse apenas isto, agora e urgentemente, tenho certeza, a sociedade já estaria muito melhor e superiormente atendida.
O texto no projeto que reforma o Código de Processo Penal pode ser considerado menos “garantista” em comparação com o texto atual?
Edilson Mougenot Bonfim — Não creio, absolutamente. Com favor, pode ser diferente. Mas o desbordamento do discurso garantista tem invadido todas as praias e não tem refluído. Ainda precisará que muitos mais crimes assolem a já sofrida população brasileira para que, em um momento de ruptura do pensamento, que antecede e pode impedir uma ruptura institucional, possa o legislador fazer uma “conversão de Damasco”, e tratar as coisas como as coisas são. O politicamente correto, se teve acertos, também gerou múltiplos desvios, e a correção da rota está mais difícil do que se pensa. Ou não se pensa.
A judicialização das provas produzidas no inquérito policial é um dos temas debatidos no projeto de reforma do CPP, em tramitação. Pode-se afirmar que essa proposta é um atentado contra o Tribunal do Júri?
Edilson Mougenot Bonfim — Posso começar a responder, por estranho, mas também indagando: o Tribunal do Júri é, de fato, ontológica e constitucionalmente, diverso dos julgamentos afeitos à Justiça togada? A soberania de seus veredictos — garantia constitucional —; a não fundamentação do voto do jurado frente à sentença do juiz togado; a “plenitude de defesa”, mais que a ampla defesa conferida aos acusados em juízos técnicos, não o torna, essencialmente, distinto da magistratura togada? Bem, entendendo serem claras tais respostas, no sentido de distinguir modelos de Justiça penal absolutamente diversos, penso, igualmente, que cada um desses juízos, enquanto procedimento penal, deva ter também suas peculiaridades. E uma delas, atribuídas ao júri, e que tem grande valia para o modelo de julgamento que se pretende, se conecta às questões anteriores: o jurado é leigo — conquanto reputado constitucionalmente legítimo e apto ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida —, e se lhe impõe a proibição de comunicar-se com outros durante o julgamento, não podendo, igualmente, fundamentar sua decisão, tudo se resumindo à escolha dialética de um voto “sim” ou “não”. Ora, com tais propriedades constitucionais, com características de tal peso absolutamente inexistentes aos julgamentos pela judicatura técnica, não se lhe pode amputar, sem dano, outra de suas características, que é a possibilidade de conhecer e julgar as provas produzidas também no inquérito. Há provas que, embora não se diga usualmente serem perecíveis — prova testemunhal, por exemplo —, em essência verdadeiramente o são, porque a ação do tempo na memória da testemunha faz com que, muitas vezes, seu testemunho em juízo seja uma lástima, enquanto ótimo, à luz da verdade, é seu testemunho prestado perante a autoridade policial.
A judicialização das provas ofende a presunção de idoneidade da Polícia?
Edilson Mougenot Bonfim - Ora, não se trabalha com a “presunção de inidoneidade da Polícia”. Bem ao contrário, todo o funcionalismo estatal, todos os seus diversos órgãos, gozam de uma “presunção de idoneidade”, da qual a autoridade policial não foi alijada. Qual seria a razão de avolumar-se papel nos autos do inquérito policial se, ao final, não poderá ser submetido ao conhecimento do jurado? Poderia se argumentar, como na velha ideia de uma doutrina, que, “uma vez ofertada a denúncia, as provas produzidas no inquérito seriam descartadas”, melhor dizendo, seriam desentranhadas dos autos e, assim, portanto, “não se avolumariam os autos com papel inútil” ou com as equivalentes gravações magnéticas. Assim, a prova teria que ser refeita em juízo. Essa ideia, a meu ver, de igual forma, é absolutamente incorreta. Um país cuja violência de seus crimes está entre a epidemia e a guerra civil, com mais de 56 mil homicídios por ano, pretender que a acusação se dê somente com provas judicializadas é incentivar, de peito aberto, a impunidade, aumentando o número de celerados, pelo péssimo exemplo da Justiça e pelo número de testemunhas que “desaparecerão” — elas próprias serão vitimizadas — entre o testemunho bom, dado na Polícia, e o testemunho-nenhum, que advirá posteriormente.
O senhor é favorável à ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes que resultem em morte, como no caso do latrocínio ou da lesão corporal seguida de morte?
Edilson Mougenot Bonfim — Por agora, e somente agora, me posicionaria contrariamente por uma simples razão: é gigantesco o número de latrocínios — e fiquemos apenas neste tipo penal — no Brasil, e o júri tem uma processualística mais elaborada e lenta. Hoje, submeter latrocínios ao tribunal popular seria sobrecarregar a instituição. Contudo, se tal proposta vier acompanhada de um incremento das condições de funcionamento do tribunal popular, daí sou francamente a favor por duas boas razões: o evento morte irmana o latrocínio, e a lesão corporal seguida de morte, ao crime de homicídio, ainda que outras elementares do tipo sejam diversas. No latrocínio, em especial, há o dolo de matar ao lado doanimus de roubar. E tais crimes devem mesmo ser julgados pelo povo, porque é ele mesmo quem sofre 99% desta emblemática violência. Em São Paulo, por exemplo, a percepção da violência de um magistrado ou de um promotor após haver blindado o seu automóvel é bastante diversa do homo medius que, sem condições de blindagem material, pensa em fazê-lo pela fé, pensamento positivo e reza.
Há, no Congresso Nacional, projeto de Emenda Constitucional que amplia a competência do Tribunal do Júri para crimes afins à corrupção. Qual o seu posicionamento sobre o tema?
Edilson Mougenot Bonfim — Muito favorável. Defendi por primeira vez a medida na conferência de abertura do “I Congresso Nacional dos Promotores do Júri”, em 1995, em Campos do Jordão (SP) e, de lá para cá, minha convicção somente aumentou. Uma vez mais entendo que quem sofre diretamente com a corrupção é o povo, e este é quem tem a maior legitimidade em julgá-la, até porque o tribunal popular tem características próprias que facilitariam uma correta resposta penal, tão mais difícil à Justiça togada.
O crime de feminicídio está proposto no Congresso Nacional e, em abril, foi aprovado na CCJ do Senado. A proposta é pela criação de uma nova qualificadora do crime de homicídio, com reclusão de 12 a 30 anos (PLS 292/13). É uma proposta viável?
Edilson Mougenot Bonfim — Penso que é atécnica. Já temos a qualificadora do “motivo torpe” no tipo de homicídio. Ora, matar-se alguém pelo só fato de ser mulher é ignóbil, é vil, é torpe. Não precisa de lei nova, basta aplicar a que temos e gastar tinta, cabeça e dinheiro buscando melhores condições de trabalho àqueles que operam no júri, para mais eficiente aplicarem a lei.
Temos observado a adoção de sistemas informatizados ou digitais pelos tribunais brasileiros. Como tais sistemas podem interferir no Tribunal do Júri? O senhor é favorável a interrogatórios de réus presos via mídia eletrônica, de forma que o mesmo não precise ser transportado do sistema carcerário para o Fórum? Até que ponto é possível aplicar a modernização de mídias ao processo do Tribunal do Júri?
Edilson Mougenot Bonfim — O desejável, em tese, seria a presença do acusado. Mas, entre o desejável e o razoavelmente possível, vai uma distância. A forma que se descobriu para, em algumas situações, possibilitar-se o interrogatório do acusado foi através da videoconferência. Daí que não posso negar sua utilidade, insistindo que, caso fosse possível — e não é, dada a espantosa quantidade de homicidas existente no Brasil —, poderíamos então tratar artesanalmente, buscando um a um, perigosos delinquentes. Há perda da efetividade em tais interrogatório? Penso que um operador de Direito bem treinado, arguto, ciente da importância de tal ato e com disposição para bem trabalhar, pode aproximar-se da verdade com eficiência, mesmo nessas situações.
No dia 9 de maio, o Código de Trânsito Brasileiro recebeu alterações pela Lei 12.971, que passa a conter a pena de reclusão de cinco a dez anos para mortes em situações de disputas e corridas envolvendo veículos. Que influência essa alteração legislativa pode ter no debate jurisprudencial sobre a consideração do homicídio no trânsito como dolo eventual?
Edilson Mougenot Bonfim — Creio ajudar a sedimentar a ideia de que algumas situações, embora graves, não se caracterizam exatamente como dolo eventual, tal é o exemplo que levou à criação de tal lei. Vale dizer: a pena para tais crimes era demasiadamente branda, levando-se, por vezes, a uma tendência de se querer compensar, pela pena do homicídio doloso, uma conduta que, em sua origem, era culposa — ou algum lugar imaginário ou intermediário entre o dolo e a culpa —, mas que a blandícia do tipo culposo instigava em alterar a classificação penal. Os rachas de automóveis, acredito, em grande maioria dos casos, não são exemplos de “dolo eventual”, mas de uma categoria anímica-volitiva-psicológica, ainda não desvendada adequadamente pela doutrina.
Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2014.
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