A figura do caçador de recompensas, que em toda a história dos Estados Unidos perseguiu criminosos por dinheiro, vem apresentando, nos últimos anos, uma nova versão: a do delator que denuncia fraudes na Justiça por dinheiro. O mais famoso, no momento, é o médico William LaCorte, que enriqueceu nesse mister: ele acabou de totalizar US$ 38 milhões em comissões recebidas do governo federal movendo ações contra empresas que, ele alega, fraudaram o sistema de saúde do país. Nem todas as ações confirmaram fraudes.
A lei antifraudes dos EUA estimula cidadãos comuns a denunciar fraudes na Justiça, por meio de ação judicial, à qual o governo pode ou não aderir. Se a fraude for comprovada, o denunciante recebe uma comissão de 15% a 25% do valor que o governo recuperar da empresa demandada, ao fim do processo.
Na common law, as leis que autorizam o pagamento de comissões a indivíduos que auxiliam a Promotoria a processar corruptos têm origem em práticas da Idade Média e se chamam leis qui tam. Qui tam é uma abreviação da frase latina: qui tam pro domino rege quam pro se ipso in hac parte sequitur, que significa “aquele que processa nessa matéria para o rei o faz também por si mesmo”.
Desde 1987, depois que a lei passou por emendas significativas em 1986 e 2012 para torná-la mais atraente aos delatores, o governo recuperou cerca de US$ 35 bilhões. Dessa quantia, US$ 24 bilhões — ou 70% do valor total — vieram de processos movidos por delatores privados, como o “Dr. LaCorte”, que se autodenomina “delator em série”.
Em apenas uma ação movida pelo “Dr. LaCorte” contra o laboratório Merck, o governo recuperou US$ 250 milhões, depois de fechar um acordo para encerrar a ação judicial. A ação movida pelo médico demonstrou que o Merck cobrou preços exorbitantes do Medicaid, órgão de seguro de saúde governamental para pobres, pelo fornecimento de Pepsid, um medicamento contra asia. Com parte de sua comissão, o médico comprou um iate, no qual mandou pintar o nome “Pepsid”.
LaCorte é, reconhecidamente, o mais prolífico dessa nova classe de caçadores de recompensas, que vem se popularizando nos EUA, de acordo com o Wall Street Journal. Nas últimas duas décadas, o médico de 65 anos, que também pratica Medicina em Nova Orleans, Louisiana, moveu 12 ações judiciais contra empresas que atuam na área de saúde. Ele se especializa em acusar empresas que fraudam programas sociais do governo, como Medicaid e Medicare.
Em cinco dessas ações, ele ajudou o governo a recuperar “algumas centenas de milhões de dólares”, diz o jornal. Cinco ações foram rejeitadas pelos tribunais. Um juiz classificou uma das ações rejeitadas como “uma recitação esfarrapada de informações que já eram do conhecimento público”. Duas ações estão pendentes. O governo aderiu a uma delas e não à outra, que foi classificada como “claramente deficiente”.
O governo americano gosta dos delatores por dinheiro, assim como sempre gostou dos caçadores de fugitivos. O Departamento de Justiça já declarou que eles “são fundamentais para trazer ao governo alegações de fraudes que, de outra forma, passariam despercebidas”. Na verdade, o governo enviou uma carta ao “Dr. LaCorte” em que elogiou sua “boa cidadania”.
No entanto, dizem os críticos, o governo também está incentivando a desonestidade de pessoas que buscam dinheiro fácil. Na maioria dos casos, essas pessoas acreditam que tudo o que têm a fazer é formalizar a denúncia em um tribunal e, então, o governo se encarregará de tocar o processo, produzir provas e arcar com os custos, enquanto elas esperam por sua comissão.
As estatísticas do Departamento de Justiça mostram, por exemplo, que de 1987 a 2010, foram movidas 5,4 mil ações por delatores em busca de recompensa. Porém, desse total, 74% não resultou em acordo ou julgamento favorável.
O Departamento de Justiça (DOJ) e os tribunais acabam dedicando muito tempo a ações frívolas. De todos as ações movidas por delatores, o DOJ deixou de aderir a 78%. Dos 22% dos casos em que os delatores decidiram ir à frente com a ação sem a participação do DOJ, 95% dos processos foram encerrados pelos juízes, sem que levassem a acordo ou julgamento.
Cultura da delação
O maior problema da delação premiada, segundo os críticos dessa prática, é que ela cria uma “cultura da delação”, que leva a injustiças graves. Por exemplo, os Estados Unidos criaram esse sistema no Afeganistão, no Iraque e onde mais levou sua “guerra ao terror”. O resultado foi que a maioria dos prisioneiros de Guantánamo Bay foram libertados — não antes passar mais de uma década atrás das grades sem julgamento — porque não tinham nada a ver com terrorismo. Apenas foram denunciados por algum caçador de recompensa.
O último caso no noticiário foi o do argelino Djamel Ameziane, que foi preso no início de 2002 e libertado em 5 de dezembro de 2013, depois de passar todo esse tempo em Guantánamo sem a formalização de qualquer acusação e sem julgamento. Não havia nada contra ele que pudesse ser comprado, a não ser o fato, repetido por ele, todo o tempo: foi delatado por alguém que buscava a recompensa.
Segundo o site Courthouse News Service, os militares americanos libertaram o argelino porque não havia nada contra ele, mas o Pentágono se recusou a lhe devolver o dinheiro que portava quando foi preso: 740 libras americanas, 429 mil afghanis e 2,3 mil rupias pasquitanesas. O Pentágono baseou sua justificou em sua “política baseada em um forte interesse de segurança nacional em impedir que esses fundos sejam usados de uma maneira que causem um impacto adverso à proteção e à segurança dos Estados Unidos”.
Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 2014.
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