quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cinco mil presos em casa desafogaram cadeias nos últimos nove anos

29.05.2011 - 10h00 Paula Torres de Carvalho
Pulseira é uma alternativa muito importante à prisão preventiva
Pulseira é uma alternativa muito importante à prisão preventiva
Em vez de irem para a cadeia, aguardam decisão judicial ou cumprem pena em casa e junto das suas famílias. A vigiá-los, uma pulseira electrónica presa ao tornozelo.
Enquanto fala, Rui balança a perna e desvia o olhar num sorriso nervoso. Está sentado no sofá da casa onde vive num bairro de má fama, em Lisboa, onde está detido há 15 meses. Balança a perna, inquieto ao contar a sua história. Os jeans escondem a pulseira electrónica colocada à volta do tornozelo, mesmo acima dos sapatos de ténis. É o seu "bilhete de identidade electrónico" que permite que seja vigiado durante 24 horas por dia.

Tem 29 anos, a antiga quarta classe e trabalhava na construção civil quando a polícia o foi buscar por suspeita de traficar droga (cocaína). "Quando somos novos temos o nosso orgulho, está a ver? O patrão gritou comigo, eu disse-lhe "não grita comigo", ele não gostou e despediu-me." Ficou com a renda de casa para pagar, as prestações do carro, os filhos... "Meti-me aí com um amigo meu. Vender, nunca vendi, mas guardava. Encontraram mais ou menos 30 gramas, não foi mais." Evita mencionar a palavra droga, sorriso nervoso, olhar inquieto.

Foi preso, julgado e condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva. Recorreu e, enquanto aguarda o resultado do recurso, o juiz aplicou-lhe a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação (abreviada por OPH) com vigilância electrónica, uma medida alternativa à prisão preventiva, cuja aplicação tem em vista combater a sobrelotação prisional e poupar dinheiro ao Estado.

A pulseira, uma espécie de "guarda electrónico privativo" de cada arguido ou condenado, transmite sinais em rádio frequência, a curtos intervalos. Esses sinais são captados por um equipamento semelhante a um telefone instalado na habitação, no qual é descarregado um ficheiro informático com os dados eferentes aos horários a que tem de obedecer.

Rui é uma das 542 pessoas (segundo dados de ontem) sujeitas a vigilância electrónica, das quais cerca de 400 nesta medida de coacção, em todo o país. E é um dos quase cinco mil que já estiveram submetidos a este regime desde que foi introduzido em Portugal. A grande maioria (90 por cento) é homem entre os 21 e os 30 anos. Os crimes contra o património predominam seguidos do de tráfico de estupefacientes.

Nos dois últimos anos, os casos de arguidos acusados de violência doméstica a quem foi aplicada a vigilância electrónica têm vindo a aumentar, totalizando os 50 no passado dia 30 de Abril. "No que respeita à violência doméstica, está a ser analisada a possibilidade de maior rigor na fiscalização da proibição de contactos entre agressor e vítima", segundo Nuno Caiado, responsável dos Serviços de Vigilância Electrónica.

Há oito meses que Rui está impedido de sair de casa a não ser para ir levar e buscar dois dos seus três filhos à escola. Das 8h50 às 9h10 e das 15h20 às 15h40. O mais novo, com dois anos, não está na creche e passa o dia com o pai enquanto a mãe trabalha nas limpezas. "Às vezes pede-me: "anda passear", mas eu digo "o pai não pode, tem pulseira", conta Rui. Agora mostra um sorriso largo. "são a minha alegria, os meus filhos". Para aproveitar o tempo entretém-se com a Internet, a televisão e com as visitas que vai recebendo. E tem medo do resultado do recurso, da possibilidade de cumprir a pena na cadeia. "Se isso acontecer vai ser muito complicado". Diz que está "bastante" arrependido. E que "se soubesse" o que sabe hoje, não se tinha "metido nisto".

Rui é um dos 40 arguidos em vigilância electrónica que a técnica da Direcção-Geral da Reinserção Social (DGRS), Cláudia Pires, acompanha. Visita-o uma vez por mês, contacta-o telefonicamente e faz relatórios periódicos sobre a sua situação ao tribunal. Nos serviços de vigilância electrónica, o movimento relativo aos arguidos sujeitos a este regime é acompanhado através de monitores que permitem visualizar o estado dos equipamentos. Basta a pulseira estar mal colocada para a situação ficar registada no ecrã. Se o portador do dispositivo abandonar a residência, o alarme dispara imediatamente, os técnicos entram em contacto telefónico com ele, deslocam-se a sua casa e podem, em caso de fuga, alertar a polícia.

Mas, dizem os números oficiais, os casos de fuga e de incumprimento são uma grande minoria. A taxa de sucesso da aplicação desta medida ronda os 94 por cento por cento. Em 2011, por exemplo, não houve nenhuma revogação da pena por incumprimento. Para Nuno Caiado, "os resultados e a aceitação pela comunidade judiciária e pela opinião pública mostram que se está perante um modo de trabalhar na reinserção social que é viável do ponto de vista da segurança da comunidade".

Além de aplicada como medida de coacção, a vigilância electrónica é indissociável da pena de prisão na habitação (PPH) que totaliza as 704 desde a reforma penal de 2007. A larga maioria relaciona-se com condução sob efeito do álcool ou falta de habilitação para guiar e pode ter a duração de dois anos.

O acompanhamento das pessoas que se encontram sujeitas a vigilância electrónica é assegurado pelos técnicos de reinserção social. Mas a sua intervenção não tem apenas em vista o mero controlo. Na perspectiva de Nuno Caiado, a vigilância electrónica "é apenas tecnologia e o mais importante é a estratégia de intervenção e os procedimentos que lhe estão associados". A medida de obrigação de?permanência na habitação é, diz, "uma alternativa muito importante à prisão preventiva, que equivale a quase 15 por cento dos presos preventivos". E, apesar de não se verificar um crescimento muito significativo da aplicação das penas com vigilância electrónica, "o campo de aplicação ainda não está esgotado", nota.

Cristina Góis sobe até ao terceiro andar de um prédio localizado numa das cidades da margem sul do Tejo. É lá que vive João (nome fictício) em regime de vigilância electrónica desde Janeiro do ano passado. Ela é a técnica da DGRS responsável pelo seu acompanhamento. Visita-o regularmente, sabe dos seus problemas, conhece a sua família e os pormenores do seu processo. João, de 40 anos, co-?merciante, foi inicialmente acusado de rapto, sequestro, tráfico de droga agravado, burla, coacção e extorsão, mas algumas destas acusações não se mantiveram, segundo afirma. O caso que já está em julgamento conta com seis arguidos e o tribunal está agora a apreciar a produção de prova. Na base do processo está a acusação da venda ilícita de um automóvel feita por João a uma pessoa sua conhecida, o que configura um crime de burla. Associados há outros crimes. Ele nega e reclama a sua inocência.

A sentença será conhecida no próximo mês e João ficará a saber se vai continuar preso em casa ou se vai para a cadeia. Por não poder sair, João sempre está junto da mulher e dos três filhos e recebe visitas da família, dos amigos e até do pastor da igreja evangélica a que pertence. E isso, diz, "sempre é melhor do que lá estar dentro".


Perguntas e respostas

Quem pode ficar sujeito a Vigilância Electrónica?
Quem esteja sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, a cumprir pena de prisão até um ano ou excepcionalmente até dois ou quem esteja sujeito ao período de adaptação à liberdade condicional

Quais são os critérios utilizados para para aplicar a Vigilância Electrónica?
Os que constam da lei e, além destes, outros de natureza social ou de oportunidade que são usados pela Direcção-Geral da Reinserção Social (DGRS)

O vigiado pode saír de casa?
Sim, mas só com autorização judicial ou dos serviços de reinserção social.
As saídas mais frequentes destinam-se a trabalho ou a estudo e são rigorosamente fiscalizadas pela DGRS.

Como é que a Direcção-Geral da Reinserção Social fiscaliza as saídas da habitação?
De várias formas. Através de verificações sistemáticas ou aleatórias por meios móveis de de monitorização electrónica, telefónicas, presenciais e por verificação biométrica de voz, via telefone (rede fixa).
Além disso, a DGRS procura sempre ter um interlocutor no local de trabalho, estudo ou outro que mantenha os serviços informados sobre o comportamento do vigiado.

E se o vigiado violar as regras estabelecidas pelo tribunal?
No caso de se tratar de uma violação grave que ponha em causa os termos da decisão judicial ou a natureza da medida aplicada ou de uma violação menos grave mas recorrente, é imediatamente elaborado um relatório de anomalias para o tribunal.
A intervenção da polícia para detenção pode ser solicitada nos casos de ausência injustificada e ilegítima da habitação. E o vigiado pode ser preso.

A Vigilância Electrónica é uma medida segura?
Sim, desde que seja usada dentro dos limites da tecnologia e da lei.
É uma tecnologia sofisticada com mecanismos defensivos e reactivos, os técnicos são bem treinados e as operações são disciplinadas por um protocolo de intervenção a nível nacional.

Quais são as vantagens sociais deste sistema?
Não tem o efeito criminógeno das prisões, permitindo ao arguido ou condenado a preservação dos seus laços familiares e sociais, o que é considerado importante na modelação de comportamentos e na prevenção de recidivas. Possibilita soluções flexíveis e ajustadas às decisões judiciais, contribuindo para a contenção e organização do quotidiano dos delinquentes.
Além disso, permite reduzir custos comparativamente aos estabelecimentos prisionais. Não exige infra-estruturas pesadas, recursos humanos intensivos ou elevados encargos de funcionamento.

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