quinta-feira, 16 de junho de 2011

Marcha da Maconha tem respaldo da Constituição


Em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal liberou a realização dos eventos chamados “marcha da maconha”, que reúnem manifestantes favoráveis à descriminalização da droga. Para os ministros, os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento garantem a realização dessas marchas. Muitos ressaltaram que a liberdade de expressão e de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.
“A livre circulação de ideias representa um signo inerente às formações democráticas que convivem com a diversidade”. Com argumentos veementes, como esse, o ministro Celso de Mello defendeu, nesta quarta-feira (15/6), a liberdade de reunião, de petição e de pensamento, durante o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 que que pedia o reconhecimento da legitimidade das manifestações a favor da descriminalização das drogas (clique aqui para ler o voto do ministro).
A ADPF 187, ao lado da ADPF 130 (que questionou e provocou a revogação da Lei de Imprensa), pode ser entendida como um manifesto pelos direitos individuais, que, nas palavras do decano, estão interligados. “Guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre”.
“O direito de reunião, enquanto direito-meio, atua em condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão”. Segundo o ministro, “há, entre as liberdades clássicas de reunião e de manifestação do pensamento, de um lado, e o direito de participação dos cidadãos na vida política do Estado, de outro, um claro vínculo relacional”.
O caso foi levado ao Supremo pela Procuradoria-Geral da República, em resposta às seguidas decisões judiciais que proibiram manifestações organizadas ao redor do Brasil a favor da descriminação das drogas, conhecidas como Marcha da Maconha. O órgão pretendia, com o pedido, a interpretação do artigo 287 do Código Penal, que tipifica o crime de apologia, conforme a Constituição Federal. Nas palavras da procurador-geral em exercício, Deborah Duprat, pedia-se a exclusão de "qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos”.
Em seu voto, o relator foi claro: “As ideias podem ser fecundas, libertadoras, subversivas ou transformadoras, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais”. Para Celso de Mello, o tema é de uma “magnitude inquestionável”.
Celso de Mello deixou claro que a defesa pública da legalização é lícita, embora não implique em uma permissão do uso de psicoativos durante esse tipo de ato. Pelo contrário, somente na via pública os cidadãos poderão “propor soluções, expressar o seu pensamento, exercer o direito de petição e, mediante atos de proselitismo, conquistar novos adeptos e seguidores para a causa que defendem”. Essa possibilidade de reunião, acredita o decano, é tanto uma liberdade, quanto uma obrigação que deve ser garantida pelo Estado.
O relator citou o Código Penal Comentado dos Delmanto. De acordo com os autores, “dependendo do caso, não haverá antijuridicidade ou ilicitude na conduta daquele que propugna pela descriminalização do abrto, do porte de droga e da eutanásia”.
Posição contramajoritária
Para Celso de Mello, o papel do Supremo é exercer um peso contramajoritário, sendo um “órgão investido do poder de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria”. Por isso, diz ele, são completamente irrelevantes “quaisquer resistências, por maiores que sejam, que a coletividade oponha às opiniões manifestadas pelos grupos minoritários”. E, completando, frisa: “ainda que desagradáveis, atrevidas, chocantes, audaciosas ou impopulares”.
Foi no mesmo sentido a fala do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que atuou como amicus curiae no caso. De acordo com a entidade, “a reivindicação por mudança, mediante manifestação que veicule uma ideia contrária à política de governo, não elide sua juridicidade. Ao contrário: a contraposição ao discurso majoritário situa-se, historicamente, no germe da liberdade da expressão enquanto comportamento juridicamente garantido”.
Para Celso de Mello, “a Marcha da Maconha, longe de pretender estimular o consumo de drogas ilícitas, busca expor, de maneira organizada e pacífica, apoiada no princípio constitucional do pluralismo político as ideias, a visão, as concepções, as críticas e as propostas daqueles que participam”.
Celso de Mello rememorou um julgamento famoso de 92 anos atrás, tendo como parte o então senador Ruy Barbosa. Ruy só conseguiu participar de campanha presidencial graças a um Habeas Corpus. Na época, ele questionou, perante o Supremo: “Aqui venho dar com o direito constitucional de reunião suspenso. Por quem? Por uma autoridade policial. Com que direito? Com o direito da força”.
Sobre esse julgamento notável, a historiadora Lêda Boechat Rodrigues escreveu, em seu História do Supremo Tribunal Federal, que “a Constituição Federal expressamente preceitua que a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública”.
Marchas pacíficas
Mesmo acompanhando o relator, o ministro Luiz Fux estabeleceu parâmetros para a realização das manifestações. Fux ressaltou que elas devem ser pacíficas, sem uso de armas e incitação à violência. Também devem ser previamente noticiadas às autoridades públicas, inclusive com informações como data, horário, local e objetivo do evento. Ele acrescentou ser “imperioso que não haja incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes” durante a marcha e deixou expresso que não pode haver consumo de entorpecentes durante o evento.
Por fim, ressaltou que crianças e adolescentes não podem ser engajados nesses eventos. “Se a Constituição cuidou de prever a proteção dos menores dependentes químicos, é corolário dessa previsão que se vislumbre um propósito constitucional de evitar tanto quanto possível o contato das crianças e dos adolescentes com a droga e com o risco eventual de uma dependência”, afirmou.
A ministra Cármen Lúcia acompanhou o voto do relator citando a afirmação de um jurista americano: “Se, em nome da segurança, abrirmos mão da liberdade, amanhã não teremos nem liberdade nem segurança”. Ela manifestou simpatia por manifestações de rua e lembrou que, há 30 anos, sua geração era impedida de se expressar pela mudança de governo na Praça Afonso Arinos, contígua à Faculdade de Direito, em Belo Horizonte, onde a ministra se formou.
Segundo Cármen Lúcia, é necessário assegurar o direito de manifestação sobre a criminalização ou não do uso da maconha, pois manifestações como essas podem conduzir a modificações de leis.
Liberdade de reunião
O ministro Ricardo Lewandowski fez questão de chamar atenção para o ponto do voto do relator que tratou do regime jurídico da liberdade de reunião. Para Lewandowski, esse trecho do voto seria uma notável contribuição do decano da Corte para a doutrina das liberdades públicas. Após fazer uma análise sobre o que seria droga, tanto hoje quanto no futuro, o ministro disse entender não ser lícito coibir qualquer discussão sobre drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, desde que respeitados os ditames constitucionais.
Já o ministro Ayres Britto afirmou que “a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, que é tonificada quando exercitada gregariamente, conjuntamente, porque a dignidade da pessoa humana não se exaure no gozo de direitos rigorosamente individuais, mas de direitos que são direitos coletivamente experimentados”.
A ministra Ellen Gracie, por sua vez, lembrou aos colegas que integra comissão internacional que estuda a descriminalização das drogas. “Sinto-me inclusive aliviada de que minha liberdade de pensamento e de expressão de pensamento esteja garantida”, disse.
Legalização do ilegal
Para o ministro Marco Aurélio, as decisões do Poder Judiciário coibindo a realização de atos públicos favoráveis à legalização das drogas simplesmente porque o uso da maconha é ilegal são incompatíveis com a garantia constitucional da liberdade de expressão. “Mesmo quando a adesão coletiva se revela improvável, a simples possibilidade de proclamar publicamente certas ideias corresponde ao ideal de realização pessoal e de demarcação do campo da individualidade”, disse.
Último a votar, o presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, salientou que a liberdade de expressão é uma emanação direta do valor supremo da dignidade da pessoa humana e um fator de formação e aprimoramento da democracia. “Desse ponto de vista, (a liberdade de expressão) é um fator relevante da construção e do resguardo da democracia, cujo pressuposto indispensável é o pluralismo ideológico”, disse. Ele acrescentou que liberdade de expressão “só pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais iminentes”.
Por fim, o ministro advertiu que “o Estado tem que, em respeito à Constituição Federal e ao direito infraconstitucional, tomar, como em todas as reuniões, as cautelas necessárias para prevenir os eventuais abusos”. Mas ressaltou: “Isso não significa que liberdade em si não mereça a proteção constitucional e o reconhecimento desta Corte”.  

Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

Clique aqui para ler o voto do ministro Celso de Mello
Clique aqui para ler o voto do ministro Marco Aurelio
Clique aui para ler o voto do ministro Luiz Fux
Clique aqui para ler reportagem sobre a votação da preliminar sobre a atuação processual do amicus curiae

Revista Consultor Jurídico, 15 de junho de 2011

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