A França foi o primeiro país europeu a proibir o uso de véus que encobrem parcial ou totalmente o rosto das mulheres muçulmanas. Depois de um ano de debates e campanhas pró e contra a medida, a lei 1.192, publicada em 12 de outubro de 2010. Com uma "vacatio legis" de seis meses, entrou em vigência no dia 11.04.2011 e, desde então, tem sido alvo de inúmeras críticas e considerada uma contradição à tríade de valores “liberdade, igualdade e fraternidade” que a nação francesa veio a representar no mundo.
O texto da lei interdita o uso de vestimentas que impeçam a identificação da pessoa, sem que haja menção direta e específica às indumentárias islâmicas ou às de qualquer outra fé, mas, na prática, a proibição tem-se voltado nitidamente para as mulheres que vestem o niqab (que deixa apenas os olhos à mostra) e a burca (que os mantém cobertos por uma tela) – observar a ilustração.
(Poucos dias antes da lei entrar em vigor, manifestantes contrários à proibição foram presos. A polícia alegou que interveio para evitar “uma incitação à violência e ódio racial”.)
A nova regra estabelece que qualquer pessoa, francesa ou estrangeira, que transitar com vestes que dificultem sua identificação por “locais abertos ao público” (como ruas, parques, escolas, bibliotecas, ginásios esportivos, delegacias, hospitais, meios de transporte e estabelecimentos comerciais) poderá ser multada. Estão entre as exceções os domicílios, veículos particulares e locais de culto.
A lei determina que os policiais têm o dever de explicar à pessoa abordada a necessidade de mostrar o rosto para que sua identidade seja confirmada. Contudo, em nenhuma hipótese o véu será retirado contra a vontade da mulher. Se ela se recusar, deve ser conduzida à Procuradoria da República.
Logo nos dois primeiros dias de vigência da lei, duas mulheres foram paradas pela polícia. Uma delas, de 27 anos, estava saindo de um centro comercial quando foi abordada por um policial. Ela recebeu um bilhete para pagamento de multa no valor de 150 euros ou matrícula em um curso de cidadania.
A outra muçulmana, de 35 anos, foi levada a uma delegacia onde foi informada da nova lei e saiu apenas com uma advertência/ notificação. O tratamento diferenciado para cada uma das mulheres evidencia a dificuldade de aplicação da regra, situação que é admitida pela própria polícia francesa: o secretário-geral adjunto do Sindicato de Comissários de Polícia, Emmanuel Roux, afirmou que a lei é "extremamente difícil de ser aplicada".
A redação da lei procurou dar mostras de que não se volta apenas contra as vestes islâmicas ao proibir a circulação de pessoas com o rosto oculto por máscara ou capuz. No entanto, se utilizados em contexto de festas, manifestações artísticas ou procissões religiosas não há problemas. Ou seja, “desde que se revistam de caráter tradicional”, estão autorizadas máscaras em festas de carnaval ou halloween, mas véus islâmicos no dia a dia, ainda que sejam peças tradicionais, estão interditados.
Inegavelmente, a medida atingiu especificamente um determinado grupo de pessoas e acabou criando um problema, sem o qual o governo poderia passar perfeitamente bem, não só com amplos setores da maior comunidade muçulmana da Europa (cerca de cinco milhões de islamitas vivem na França, sendo pouco mais de duas mil as mulheres que usam véus integrais), mas também com as organizações francesas e europeias de defesa dos direitos humanos.
Não foram poucas as críticas dirigidas à nova regra. A polêmica em torno da questão fez com que Estados Unidos e Irã concordassem em alguma coisa: ambos se opuseram à lei. O porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Mark Toner, declarou: “Deixo para a França explicar suas leis, mas nós apoiamos a liberdade religiosa e de expressão, o que inclui o direito de expressar as crenças com o uso de vestimentas religiosas”. Já o porta-voz da Chancelaria do Irã, Ramin Mehmanparast, afirmou que a lei é “um método errado que não vai levar um bom resultado”.
O Governo francês tem como uma das principais justificativas para sustentar a proibição a questão da segurança pública. Nesse sentido, afirma-se que a possibilidade de se esconder sob véus favorece “comportamentos suscetíveis de perturbação à ordem pública”. Jean-François Copé, atual líder do partido União por um Movimento Popular, de Nicolas Sarkozy, citou como exemplo um roubo supostamente realizado “por criminosos que usavam burca” em um bairro de Paris.
Na realidade, o maior temor está relacionado a possíveis ataques de terroristas suicidas, razão questionada por muitos uma vez que não se tem conhecimento de fato recente relacionado ao uso de burca. Os críticos lembram que mochilas ou malas seriam lugares mais prováveis e até mais práticos para se esconder uma bomba.
A lei 1.192/2010 acabou atingindo apenas um grupo de pessoas.
Há, ainda, o argumento de que as vestes muçulmanas estão em desacordo com o secularismo francês – separação entre Estado e religião. Em 2004 já houve uma medida que restringia o uso de símbolos religiosos ostensivos, como xales, solidéus e crucifixos em escolas públicas. Nesta ocasião, a proibição foi adotada, segundo o governo, para remover uma fonte de tensão e violência nas escolas. A regra tem sido obedecida.
É um tanto questionável se esse tipo de proibição é a melhor forma de garantir a laicidade do Estado, e no caso das escolas, se constitui modo mais eficaz de garantir “a paz” do que passar às crianças e aos adolescentes noções de respeito à diversidade cultural – em que se pode incluir a religião. Ademais, roupa e uso de adereços deveriam ser considerados parte do direito à expressão, que inclui a fé e o modo de se trajar.
Há muitos que apoiam a medida e veem nela uma forma de preservar a cultura francesa e combater o que consideram tendências separatistas dos muçulmanos. Entre estes, apontam alguns analistas, estaria parcela do eleitorado que partilha forte sentimento xenófobo, daí fala-se em interesses políticos por trás da lei 1.192/2010. Os críticos alegam que o presidente Nicolas Sarcozy, que se candidatará a reeleição no próximo ano, aprovou a lei com o intuito de melhorar seus índices de popularidade, considerando a crescente ‘islamofobia’ do povo francês.
Além de afirmarem que os véus vão contra os princípios que guiam a vida em sociedade – em contradição aos valores trazidos pelo Iluminismo – os defensores da medida proibitiva também ressaltaram o suposto papel libertador do Estado. O presidente afirmou que os véus relegam as mulheres a um status inferior, o que é incompatível com as noções francesas de igualdade, logo, a proibição estaria em defesa da autonomia feminina. Silvana Koch-Mehrin, vice-presidente do Parlamento Europeu, descreveu a burca como "uma prisão móvel".
As pessoas que sustentam esse argumento partem da presunção de que as mulheres que se vestem de forma ortodoxa são obrigadas por membros do sexo masculino de suas famílias. No entanto, o projeto “At Home in Europe” da Open Society Foundations entrevistou 32 mulheres muçulmanas que cobrem seus rostos com véus.
A pesquisa revelou que a maioria, 30, o faz por livre escolha. Muitas delas são os primeiros membros de suas famílias a optar por esse tipo de vestimenta e, em geral, contam que houve uma resistência inicial de maridos, pais e mães. Algumas das entrevistadas encaram o uso dos véus integrais como parte de uma jornada espiritual e revelam que se trata de uma experiência quase mística. Nenhuma delas, porém, quer entrar em guerra contra a república e afirmam que, se lhes pedirem para tirar o véu para identificação, estarão prontas para tirá-lo.
Noura Jaballah, presidente do Fórum Europeu das Mulheres Muçulmanas, em Paris, acredita que "a lei vai isolar ainda mais as mulheres que usam esse tipo de vestimenta". Além disso, ela observa que "são os muçulmanos que devem discutir entre eles para adotar suas próprias práticas. Essa lei é uma intrusão em um assunto que não diz respeito ao Estado".
Jaballah acredita que as mulheres devem respeitar a obrigação de mostrar seus rostos para se identificar, quando solicitadas, em aeroportos, bancos ou repartições públicas. "Mas esta lei já está provocando desvios na interpretação da medida. Há casos de mães que utilizam apenas o véu que cobre os cabelos e que estão sendo impedidas de participar de reuniões ou atividades escolares", disse.
É claro que também existem casos de mulheres que trajam niqab ou burca em obediência a (e/ou medo de) pais ou maridos. Nesse caso caberia ao Estado intervir, mas por meio de recursos que auxiliem a mulher a sair da situação em que se encontra, caso essa seja a vontade dela. Deixar à disposição números de telefone com garantia de sigilo e oferecer a possibilidade de transferência para abrigos seguros, assim como novas oportunidades para recomeçar, são opções que poderiam ser mais úteis para a concretização do ideal libertador – não só da França, mas de quaisquer outros Estados que se propõem a “salvar” muçulmanas de suas indumentárias.
Para essas situações – de mulheres serem obrigadas por seus familiares a usar véus integrais – a lei francesa prevê uma multa maior, cerca de 30.000 euros, e possível prisão por até um ano para quem for considerado culpado por forçar o uso do véu.
Assim, em nome da laicidade do Estado, da transparência, da segurança pública e até de uma segurança imposta a mulheres, são violadas a soberania cultural dos povos, as liberdades de religião e expressão.
A lei 1.192/2010 parece ter inspirado outras nações européias: foi noticiado que o parlamento belga também discutiria o veto ao uso de véu. A câmara baixa do parlamento aprovou por maioria (136 votos a 1 e duas abstenções) projeto de lei similar ao texto francês. O projeto segue para o senado Belga.
E parece que na França as restrições à cultura islâmica não cessarão tão cedo: alguns dias depois de a lei entrar em vigor, houve uma discussão sobre a proibição de orações nas ruas. Mais uma vez, teoricamente, a medida valeria para todas as religiões. Mas, na prática, teria maior impacto para os muçulmanos. As maiores cidades francesas possuem mesquitas, mas, dado o número de fiéis, não conseguem comportar todas as pessoas, de modo que muitas estendem seus tapetes nas ruas e fazem suas orações.
“A liberdade conduzindo o povo” - Delacroix
Já previa a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada no contexto da mais icônica das revoluções ocidentais, em seu artigo 4º, que “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei”. Cabe, então, questionar: a prática da religião islâmica prejudica os demais? Desconsiderando os praticantes que seguem a linha fundamentalista (que não são maioria), claro, e sem confundir a ideia de “prejudicar” com “incomodar”.
A discussão sobre os limites entre as manifestações religiosas em público em sociedades seculares contemporâneas e o poder do Estado de interferir nesta esfera não deve se esgotar no cenário europeu, mas ser estendida a sociedades multiculturais, como é claramente o caso do Brasil – que muitas vezes se diz plural, rico em diversidade e sempre receptivo, mas ainda precisa aprender a lidar com muitas das suas “chagas” intimamente ligadas a preconceitos étnicos, sócio-econômicos, culturais, entre tantos outros que persistem profundamente arraigados no consciente e subconsciente de seu povo.
(Érica Akie Hashimoto). IBCCRIM.
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