terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Crônica: Olhos de adolescente

Por João Baptista Herkenhoff
 
Fiz cirurgia de catarata. Primeiro no olho esquerdo. Uma semana depois, no olho direito. Não foi uma cirurgia precoce. Tenho idade que me assegura este direito.
O Dr. Sebastião Leonardo da Silveira, competente cirurgião que me operou com cuidado, carinho e sucesso, fez-me as recomendações para o pós-operatório: não olhar para baixo; movimentar a cabeça com cuidado; pingar os colírios nos horários determinados; evitar o uso excessivo da visão. Tudo foi feito, conforme prescrito, sob os cuidados de minha mulher. Um tratamento que faria inveja a um rei.
Eu não podia supor que enxergasse tão mal. Habituara-me ao déficit visual, que já vem de longa data. Na semana que mediou entre a primeira e a segunda cirurgia é que pude comparar o desempenho do olho operado e do olho por operar. Uma diferença total. Convenci-me de que sou, seguramente, uma pessoa paciente. Como pude conviver por tanto tempo com olhos que vislumbravam apenas uma fração do mundo, mesmo com o apoio de óculos? Pelo menos, em princípio, ou para simplesmente me consolar, dei razão a Antoine de Saint-Exupéry: o essencial é invisível aos olhos. Como eu era capaz de ver o essencial, que é invisível aos olhos, pois desde criança frequentei os arraiais da Poesia, e a Poesia nos abre para a essência das coisas, não senti tanta falta de olhos para ver. O que me escapava não era essencial.
Essa conclusão, a partir de Saint-Exupéry, como disse, foi provisória. Poucos dias depois da segunda cirurgia, quando fui fazer a revisão de praxe, verifiquei que, em algumas ocasiões, a visão do essencial me fora furtada pela deficiência do ver.
O fato que me fez constatar o falso consolo, proporcionado pela máxima de Saint-Exupéry, aconteceu quando, depois da revisão realizada pelo Dr. Sebastião Leonardo, eu esperava a entrega de papéis na portaria da clínica.
Já de início, sentado confortavelmente na recepção, eu percebia como era capaz de ler textos em letra pequena, afixados no mural de avisos. Mas a prova contundente, grandiosa, surpreendente, avassaladora, de que nem sempre eu estava vendo o essencial, veio depois.
Do lado oposto àquele em que eu me encontrava, surge a figura esbelta de uma moça loira, alta, tudo na medida e no lugar certo, ângulos e sinuosidades esmeradas, trajando um vestido amarelo que só realçava sua esplêndida beleza, desenhando-lhe as formas esculturais. Só podia ser mesmo uma feliz coincidência do destino. Nem a mais sofisticada clínica apresentaria uma figura feminina, a desfilar de um extremo ao outro da sala, para convencer um recém-operado de que sua cirurgia tinha sido um grande feito médico.
Diante daquele espetáculo de esplendor e de vida, só uma frase-interjeição brotou-me dos lábios, dita baixinho a minha mulher, que sorriu, achando graça:
“Este médico é realmente muito bom.”
 
João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, 74 anos, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES). Autor do livro Mulheres no banco dos réus – o universo feminino sob o olhar de um juiz (Editora Forense, Rio, 2009).
 
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