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Os últimos acontecimentos marcantes de novembro de 2010, no Rio de Janeiro, reacendem a importante questão da presença, ou ausência, para melhor dizer, do Estado em determinadas localidades, fato que não é exclusivo da capital fluminense. Cenas de bandos criminosos migrando de um morro para outro, tiroteios, maciça presença de forças policiais e militares nas ruas tomam conta da rotina carioca e permitem a seguinte indagação: será que isso transcenderá o Rio de Janeiro e acontecerá em outras cidades? Mais: como chegamos a esse ponto de (in)civilidade? Parece fundamental reconhecer que a inoperância e a incapacidade do Estado permitiram que se chegasse a tudo isso. Muito se ouve falar, e se discute, cada vez mais, formas de repressão ao crime organizado. Mas será que o crime organizado realmente existe? Ou, ao que tudo indica, é a própria desorganização estatal que permite falar nessas supostas organizações criminosas?
Este colapso na segurança pública que hoje estamos atônitos assistindo não surgiu da noite para o dia, mas sim de longos anos de parcos e tímidos investimentos na área da segurança pública como um todo, o que não é exclusividade do Rio de Janeiro, e sim ocorre em todo o Território Nacional. O Estado pouco faz e pouco investe, de fato, em políticas de segurança pública e em políticas públicas de segurança que venham a ser bem sucedidas. Basta atentar-se ao caos do sistema penitenciário para verificar a inoperância estatal na repressão à criminalidade. O auge da desorganização estatal é revelado diariamente quando se verifica que os criminosos “presos” continuam a controlar a atividade criminosa, bem como têm acesso a todo e qualquer tipo de aparelho tecnológico que permite a comunicação extra-muro dos presídios.
É preciso rever pontos cruciais na segurança pública. O Estado deve aprofundar os investimentos nessa área: melhores salários, condições, formação e capacitação pessoal das forças policiais e aparelhamento das instituições, inclusive dos setores de inteligência para a repressão à corrupção. Todavia, isso não basta. Tem-se que investir para melhorar o sistema carcerário e, fundamentalmente, realizar políticas de inclusão social para que o crime não seja um meio de sobrevivência, especialmente, numa sociedade consumista, na qual, para Bauman, “o arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha – a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar”.(1)
Não há direito penal que, de forma isolada, como se fosse a panacéia de todos os males, resolva o problema da criminalidade. É vital, em um Estado Democrático e Constitucional de Direito, se reconhecer que é deveras importante a realização de políticas públicas de segurança no sentido de que, com melhores condições sociais e educacionais, as quais visem sempre a inclusão social, será possível também minimizar e melhor reprimir toda e qualquer forma de criminalidade. É preciso ir além do singelo pensamento de que leis penais mais graves e severas, acompanhadas de medidas processuais mais repressoras e restritivas de direitos, garantirão sucesso nessa árdua missão. O Estado precisa estar presente em todas as localidades, pobres ou ricas, de forma contínua, e não só temporariamente com forças policiais ou com as denominadas “novas” unidades de polícia pacificadora. Como bem conclui Lemgruber, ao pontuar a importância de políticas sociais e públicas, “só um maciço esforço de resgatar a dívida social o mais rapidamente possível, junto com uma profunda revisão do nosso falido modelo de segurança e justiça, é que nos permitirá vislumbrar no horizonte um país menos injusto e violento. O resto são mitos, ou demagogia de quem busca na manipulação do medo uma fonte de lucro e poder”.(2)
É mais que urgente a aproximação do Estado, não só com suas forças policiais, para com as comunidades, em especial as carentes, seja no Rio de Janeiro, seja em outra cidade desse País. Nesse momento, é importante que sejam desenvolvidas políticas públicas de segurança que se foquem, exemplificativamente, na educação, na saúde, na geração de emprego, no lazer, no saneamento básico, para que não fiquemos a mercê de medidas paliativas e restritas seguidamente adotadas pelo Estado. Assim, um Estado organizado desorganiza a criminalidade.
Portanto, o Estado necessita se reorganizar para reprimir a criminalidade, esquecendo-se de divergências político-partidárias, e, por seu turno, a sociedade precisa estar atenta e cobrar a efetiva presença e os investimentos do Estado para que cenas de guerrilha urbana não virem parte da rotina brasileira. Políticas de segurança pública e políticas públicas de segurança, conjugadas, para que as cenas de “Tropa de Elite” fiquem apenas no cinema e não façam parte do nosso cotidiano.
NOTAS
(1) Conclui o autor: “Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e não só as lojas ou supermercados ou lojas de departamentos ou aos ‘templos do consumo’ (...). Se ‘comprar’ significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo da carteira ou com o crédito restante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta às prateleiras – então vamos às compras tanto nas lojas quanto fora delas; vamos às compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 87).
(2) A autora ainda menciona: “Estudos do Banco Mundial sobre pobreza urbana na América Latina indicam que a criminalidade violenta na região só poderá ser prevenida de forma eficaz por meio, principalmente, de investimentos sociais consideráveis para reduzir o número de pobres nas grandes cidades; estimular a geração de empregos e propiciar crédito fácil para o desenvolvimento de pequenos negócios; estimular programas educacionais e de lazer que mantenham os jovens longe do crime, além de estratégias que reforcem o envolvimento da comunidade no controle do crime e da violência” (LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal do RJ, 2001).
Guilherme Rodrigues Abrão, Advogado criminalista (RS). Mestre em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Ciências Criminais (Rede LFG) e em Direito Penal Empresarial (PUC/RS). Professor de Direito Penal e Processo Penal. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRAPP).
Como citar este artigo: ABRÃO, Guilherme Rodrigues. Crime organizado, estado desorganizado In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 09, fev., 2011.
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