quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Artigo: Crime organizado, estado desorganizado

Guilherme Rodrigues Abrão
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Os últimos acontecimentos marcantes de novembro de 2010, no Rio de Janeiro, reacendem a importante questão da presença, ou ausência, para melhor dizer, do Estado em determinadas localidades, fato que não é exclusivo da capital fluminense. Cenas de bandos criminosos migrando de um morro para outro, tiroteios, maciça presença de forças policiais e militares nas ruas tomam conta da rotina carioca e permitem a seguinte indagação: será que isso transcenderá o Rio de Janeiro e acontecerá em outras cidades? Mais: como chegamos a esse ponto de (in)civilidade? Parece fundamental reconhecer que a inoperância e a incapacidade do Estado permitiram que se chegasse a tudo isso. Muito se ouve falar, e se discute, cada vez mais, formas de repressão ao crime organizado. Mas será que o crime organizado realmente existe? Ou, ao que tudo indica, é a própria desorganização estatal que permite falar nessas supostas organizações criminosas?
Este colapso na segurança pública que hoje estamos atônitos assistindo não surgiu da noite para o dia, mas sim de longos anos de parcos e tímidos investimentos na área da segurança pública como um todo, o que não é exclusividade do Rio de Janeiro, e sim ocorre em todo o Território Nacional. O Estado pouco faz e pouco investe, de fato, em políticas de segurança pública e em políticas públicas de segurança que venham a ser bem sucedidas. Basta atentar-se ao caos do sistema penitenciário para verificar a inoperância estatal na repressão à criminalidade. O auge da desorganização estatal é revelado diariamente quando se verifica que os criminosos “presos” continuam a controlar a atividade criminosa, bem como têm acesso a todo e qualquer tipo de aparelho tecnológico que permite a comunicação extra-muro dos presídios.
É preciso rever pontos cruciais na segurança pública. O Estado deve aprofundar os investimentos nessa área: melhores salários, condições, formação e capacitação pessoal das forças policiais e aparelhamento das instituições, inclusive dos setores de inteligência para a repressão à corrupção. Todavia, isso não basta. Tem-se que investir para melhorar o sistema carcerário e, fundamentalmente, realizar políticas de inclusão social para que o crime não seja um meio de sobrevivência, especialmente, numa sociedade consumista, na qual, para Bauman, o arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha – a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar”.(1)
Não há direito penal que, de forma isolada, como se fosse a panacéia de todos os males, resolva o problema da criminalidade. É vital, em um Estado Democrático e Constitucional de Direito, se reconhecer que é deveras importante a realização de políticas públicas de segurança no sentido de que, com melhores condições sociais e educacionais, as quais visem sempre a inclusão social, será possível também minimizar e melhor reprimir toda e qualquer forma de criminalidade. É preciso ir além do singelo pensamento de que leis penais mais graves e severas, acompanhadas de medidas processuais mais repressoras e restritivas de direitos, garantirão sucesso nessa árdua missão. O Estado precisa estar presente em todas as localidades, pobres ou ricas, de forma contínua, e não só temporariamente com forças policiais ou com as denominadas “novas” unidades de polícia pacificadora. Como bem conclui Lemgruber, ao pontuar a importância de políticas sociais e públicas, “só um maciço esforço de resgatar a dívida social o mais rapidamente possível, junto com uma profunda revisão do nosso falido modelo de segurança e justiça, é que nos permitirá vislumbrar no horizonte um país menos injusto e violento. O resto são mitos, ou demagogia de quem busca na manipulação do medo uma fonte de lucro e poder”.(2)
É mais que urgente a aproximação do Estado, não só com suas forças policiais, para com as comunidades, em especial as carentes, seja no Rio de Janeiro, seja em outra cidade desse País. Nesse momento, é importante que sejam desenvolvidas políticas públicas de segurança que se foquem, exemplificativamente, na educação, na saúde, na geração de emprego, no lazer, no saneamento básico, para que não fiquemos a mercê de medidas paliativas e restritas seguidamente adotadas pelo Estado. Assim, um Estado organizado desorganiza a criminalidade.
Portanto, o Estado necessita se reorganizar para reprimir a criminalidade, esquecendo-se de divergências político-partidárias, e, por seu turno, a sociedade precisa estar atenta e cobrar a efetiva presença e os investimentos do Estado para que cenas de guerrilha urbana não virem parte da rotina brasileira. Políticas de segurança pública e políticas públicas de segurança, conjugadas, para que as cenas de “Tropa de Elite” fiquem apenas no cinema e não façam parte do nosso cotidiano.

NOTAS

(1) Conclui o autor: “Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e não só as lojas ou supermercados ou lojas de departamentos ou aos ‘templos do consumo’ (...). Se ‘comprar’ significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo da carteira ou com o crédito restante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta às prateleiras – então vamos às compras tanto nas lojas quanto fora delas; vamos às compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 87).
(2) A autora ainda menciona: “Estudos do Banco Mundial sobre pobreza urbana na América Latina indicam que a criminalidade violenta na região só poderá ser prevenida de forma eficaz por meio, principalmente, de investimentos sociais consideráveis para reduzir o número de pobres nas grandes cidades; estimular a geração de empregos e propiciar crédito fácil para o desenvolvimento de pequenos negócios; estimular programas educacionais e de lazer que mantenham os jovens longe do crime, além de estratégias que reforcem o envolvimento da comunidade no controle do crime e da violência” (LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal do RJ, 2001).
 
Guilherme Rodrigues Abrão, Advogado criminalista (RS). Mestre em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Ciências Criminais (Rede LFG) e em Direito Penal Empresarial (PUC/RS). Professor de Direito Penal e Processo Penal.  Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRAPP).

Como citar este artigo: ABRÃO, Guilherme Rodrigues. Crime organizado, estado desorganizado In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 09, fev., 2011.

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