terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Direito penal e doping

Luís Greco e Alaor Leite
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Os casos de doping no Brasil são cada vez mais candentes. No ano de 2009, registrou-se número recorde de ocorrências.(1) No plano internacional, o Brasil assumiu compromisso de tomar as medidas apropriadas para a prevenção e o combate ao doping.(2) Entre as medidas apropriadas encontra-se, naturalmente, o direito e, possivelmente, o direito penal. Tendo em vista que os dois maiores eventos esportivos internacionais da atualidade, a saber, a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos, serão em breve realizados em solo brasileiro, é de prever-se que a possibilidade de fazer uso do direito penal para combater o doping em breve seja posta na ordem do dia da política. Além disso, a criminalização do doping já é realidade legislativa em uma série de países que costumam influenciar o legislador brasileiro, como Espanha, Portugal e Itália,(3) e o clamor por uma padronização mundial no tratamento do doping parece ser cada vez maior. Tudo a indicar que a discussão teórica sobre a suposta criminalização do doping é um empreendimento necessário.
A lex lata ainda pouco se ocupa do problema do doping.(4) Há, até o momento, apenas um tratamento jurídico de ordem disciplinar. Fundamentais nessa regulamentação são a Resolução nº 2 do Ministério do Esporte e do Conselho Nacional do Esporte, publicada em Diário Oficial em 12 de maio de 2004, e o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (art. 100-A e ss., CBJD), recentemente alterado pela Resolução nº 29 do Conselho Nacional do Esporte e em vigor desde 31 de dezembro de 2009.Desde especialmente a Resolução nº 2, o Conselho Nacional do Esporte vem publicando anualmente a lista de substâncias e métodos proibidos, sempre com referência às listas publicadas pela World Anti-Doping Agency (WADA). Além disso, criou-se junto ao Ministério do Esporte uma agência nacional antidoping, com o nome provisório de Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD).
De lege lata e do ponto de vista do Direito Penal, naturalmente poder-se-ia pensar na incidência do tipo de lesões corporais (art. 129, CP). Esse dispositivo, contudo, não abrange a conduta do atleta que se dopa a si mesmo, porque aqui há mera autolesão. Participar nessas autolesões, fornecendo a substância ao atleta, seria uma participação numa autocolocação em perigo, excludente de imputação objetiva.(5) E se o doping for ministrado por outrem, haverá, na maioria dos casos, um consentimento do atleta nas lesões, que excluirá (no mínimo) a antijuridicidade.
Tampouco a Lei de Drogas (Lei 11.343/06) abrange os casos de doping. Afinal, a coincidência entre as substâncias constantes das duas listas é o acaso, a exceção.
O estelionato (art. 171, CP) seria, em regra, igualmente de difícil configuração. Em especial, parece difícil afirmar a conduta típica, - o artifício, o ardil ou outro meio fraudulento - porque em muitos casos sequer haverá qualquer comunicação entre aquele que faz uso do doping e a pessoa enganada. Em segundo lugar, também o resultado - o prejuízo alheio, o dano patrimonial - dificilmente estará presente com a necessária concreção.
Bastante recentemente entrou em vigor a nova redação do Estatuto do Torcedor, dada pela Lei 12.299/10. Dentre os novos tipos penais há um delito de fraude contra a competição esportiva: “Art. 41-E. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva”. O principal obstáculo a que esse dispositivo possa ser entendido como uma resposta ao problema do doping é a exigência de uma fraude do resultado de competição esportiva. Ou seja, parece necessária a quase impossível prova de que o resultado real da disputa seria diferente se não tivesse sido usada a substância.
A lex lata não possui, assim, uma resposta específica para o problema do doping, com o que surge a pergunta quanto a se é ou não aconselhável introduzir um novo tipo penal no ordenamento.(6) Preliminarmente, contudo, deverá esclarecer-se o que se entende por doping. Em todos os âmbitos, desde a filosofia do esporte, passando pela medicina, até chegar ao direito, há grande e, em parte, inconclusiva discussão em torno de um conceito de doping. Como no direito penal vige o mandato de determinação da lei, um dos corolários do princípio da legalidade, o problema apenas se agrava.(7) Outra questão conceitual é distinguir entre o heterodoping e o autodoping, na medida em que cada um deles apresenta problemas jurídicos diversos.
Um novo tipo penal, como qualquer tipo, teria sua legitimidade condicionada especialmente a três grupos de requisitos: o primeiro deles diz respeito ao bem jurídico protegido (tipos legítimos não podem proibir por proibir, mas têm de tutelar algum bem jurídico, algo valioso, que mereça ser protegido pelo Estado por meio do direito penal); em segundo lugar, o Estado não pode intervir na esfera de privacidade ou de autonomia dos cidadãos; e, por fim, a tipificação tem de ser praticável, em sentido amplo.
Ter-se-á, assim, de discutir que bem jurídico se pretende tutelar com a proibição do doping. Tutelar a saúde do atleta que se dopa seria uma manifestação de paternalismo duro (“hard paternalism”), incompatível com o reconhecimento da autonomia dos indivíduos de escolherem a que perigos querem expor-se, escolha que se expressa já na participação em esportes profissionais de alto rendimento, e não apenas na utilização de substância dopante. O bem saúde pública, ve­lho conhecido do direito penal de tóxicos, tampouco parece um caminho viável, porque ou ele apresenta implicações organicistas politicamente duvidosas, ou não significa mais do que a soma da saúde de vários indivíduos. Os ideais de fair play ou de lealdade na competição desportiva têm indiscutível valor moral, mas não são algo que possa interessar ao Estado a ponto de justificar uma intervenção coercitiva. Parece-nos, isso sim, que o doping afeta interesses de ordem mais material, a saber, a livre concorrência num mercado em que estão em jogo interesses financeiros. O doping seria, pois, um delito econômico. Essa concepção do doping como um delito violador do bem jurídico concorrência, que vem ganhando espaço na doutrina internacional,(8) parte da ideia de que esporte profissional é um negócio de enorme relevância econômica, e de que o doping afeta de modo negativo o desenrolar da concorrência nesse mercado. É claro que uma série de problemas fica ainda por resolver. O principal deles parece-nos ser a distinção entre o doping e outras infrações desportivas que também geram vantagens concorrenciais, mas que parecem de todo impassíveis de incriminação – pense-se em faltas como a “mão de Deus”, ocorrida na Copa do Mundo de Futebol em 1986. Assim, correr-se-ia o risco de confundir injusto esportivo e injusto penal, e seria possível que se chegasse a uma criminalização difusa de meras faltas desportivas.
Se se quiser tutelar esse bem por meio de um tipo penal, deve-se ter o cuidado adicional de não adentrar na esfera de privacidade ou de autonomia dos cidadãos.(9) Por isso, não se deve tipificar a posse de substância dopante. A ação típica deveria ser algo como participar de competição esportiva profissional.
Por fim, é de atentar-se para uma série de considerações de natureza pragmática, que dizem respeito à implementação do dispositivo e que inserem a criminalização do doping em um dilema. O uso dos resultados de exames antidoping como prova poderá esbarrar no princípio do nemo tenetur se ipsum accusare. Existe ainda o problema do ne bis in idem material no caso de se perseguir criminalmente um atleta já punido severamente após o término do procedimento disciplinar interno.(10) Há a séria possibilidade de que a criminalização permaneça de todo ineficiente, não passando, nas palavras com que avalia Roxin o correspondente dispositivo alemão, de “letra morta”.(11) Caso se queria ultrapassar estes obstáculos, talvez se tenha de montar um verdadeiro aparato bélico, como a previsão de delação premiada ou de um regime especial para organizações criminosas no esporte,(12) o que é de todo inaceitável. 

NOTAS

(1) Segundo o jornal Gazeta do Povo (Curitiba, 29 de dezembro de 2009).
(2) O Brasil ratificou sem ressalvas a Convenção da UNESCO contra o Doping no Esporte, em 26.10.2007. A aprovação ocorreu através do Decreto Legislativo n. 306, e essa obrigação é expressamente assumida no art. 1º do Decreto 6.653/08, relativo à internalização da Convenção da UNESCO.
(3) A Alemanha ainda não criminaliza autonomamente o doping. Em detalhes ROXIN, Doping e direito penal, e LEITE, O doping como suposto problema jurídico-penal: um estudo introdutório, in ROXIN/L. GRECO, Doping e direito penal, tradução e introdução de Alaor Leite, São Paulo: Atlas, 2011, no prelo.
(4) Detalhes em LEITE, O doping..., 3. Ver também SCHMITT DE BEM, A intervenção penal no doping desportivo, in Curso de direito desportivo sistêmico, v. II, coord. Rubens Approbato Machado (et al.). São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 423-439.
(5) Cf. L. GRECO, Um panorama da teoria da imputação objetiva, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 62 e ss.
(6) Sobre esse problema, extensamente, ROXIN, Doping e direito penal, e GRECO, Sobre a legitimidade da punição do autodoping nos esportes profissionais, ambos no livro citado acima, nota 3.
(7) LEITE, O doping…, 5.3.
(8) Nesse sentido, ROXIN, Doping..., V, e GRECO, Sobre a legitimidade..., B III.
(9) Ver GRECO, Sobre a legitimidade…, C.
(10) Em detalhes, por exemplo, sobre os problemas do nemo tenetur se ipsum accusare e do ne bis in idem, ROXIN, Doping…, III, e LEITE, O doping…, 5.5.
(11) ROXIN, Doping…, III.
(12) Como faz a legislação portuguesa (LEITE, O doping…, 3).


Luís Greco
Dr. em direito pela Universidade Ludwig Maximilians, de Munique, Alemanha. Mestre pela mesma instituição. Wissenschaftlicher Assistent junto à cátedra do prof. dr. dr. h. c. mult. Bernd Schünemann. 

Alaor Leite
Mestrando em Direito na Universidade Ludwig Maximilians, de Munique, Alemanha, sob orientação do prof. dr. dr. h. c. mult. Claus Roxin



GREGO, Luís e LEITE, Alaor. Direito penal e doping In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 11-12, fev., 2011.

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