quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Artigo: O princípio do limite de último grau histórico em matéria penal

Por Igor Pereira

O Direito não pode ser dissociado da sua história. Suas normas contêm uma parte considerável das conservações e das resistências históricas, que conferem logicidade e razoabilidade ao mundo. Ele se desenvolve temporalmente. As intelecções adequadas dos processos históricos captam as manifestações da natureza humana, as práticas institucionais e os valores sociais que são posteriormente consagrados na lei. O bom jurista empreende um esforço hercúleo para que esses aspectos da vida, plasmados na norma e reflexos das opções políticas da ordem constitucional vigente, sejam respeitados como norte interpretativo nas decisões judiciais. A norma jurídica, independente do marco histórico de sua vigência, é iluminada pelos vetores políticos e valorativos do poder constituinte.
Nessa perspectiva, proponho um novo princípio do direito penal, cuja função primordial será delimitar os espaços de expansão do direito de punir do Estado Democrático de Direito por meio do resgate das jurisprudências criminais dos regimes totalitários e antidemocráticos, como obstáculo final às expansões contingentes dos julgamentos democráticos. Denomino essa visão fontana do Direito Penal de princípio do limite de último grau histórico em matéria penal.
Esse princípio é extraído do art. 1°, caput, da Carta Magna de 1988, que constitui a República Federativa do Brasil em Estado Democrático de Direito. A opção política pela democracia impede que a jurisprudência criminal seja, em último grau, mais rígida do que aquela produzida no regime totalitário ou ditatorial da história de um determinado país, pois é da essência da democracia a elevação do princípio da liberdade como norte do sistema político, estabelecendo limites mais rígidos aos planos de ação de segurança pelo respeito aos direitos fundamentais. O mesmo raciocínio principiológico poderá ser utilizado em matéria processual penal. O desrespeito à essência democrática pode ser aferido objetivamente pela comparação intertemporal das jurisprudências criminais.
O sistema penal contemporâneo precisa ter como contraponto de atuação os regimes ditatoriais, para que tenha na jurisprudência deles uma clara vedação histórica de expansão. É claro que um sistema penal democrático deve ter limites mais austeros do que aqueles estabelecidos em sistemas totalitários, porém estes servem como um contraponto em último grau histórico quando as limitações correntes da dogmática penal estejam obscurecidas pelos desejos imediatistas das políticas criminais cambiantes. A paixão é um contraponto silencioso à razão. Quando a expansão for inarredável e errante, tem-se como limite de último grau a jurisprudência criminal antidemocrática, uma vez que a democracia perderá toda a sua essência se for menos libertária do que os punhos de aço das ditaduras. Tal postulado vem ser ainda um meio de controle da substancialidade da democracia, no intento de impedir a existência apenas formal dos direitos fundamentais que anuncia. Na trilha de Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 186): “Não faltam exemplos de ditadores que realizam atos de autoridade perfeitamente arbitrários e julgam, sem embargo, fazer obra democrática”.
São requisitos para a aplicação do princípio do limite de último grau histórico em matéria penal: a) a existência de um regime totalitário ou antidemocrático na história do país; b) a aplicação conjunta ou subsidiária à jurisprudência criminal democrática; c) a relação de semelhança entre o caso concreto e o fato julgado à época do regime totalitário ou antidemocrático; d) a observância dos tipos penais criados posteriormente ao fato julgado, se alterarem substancialmente o espectro criminal do ordenamento jurídico e estiverem em consonância com os princípios do direito penal.
No caso brasileiro, o longo regime militar produziu vasta jurisprudência criminal a ser desvendada. O estudo da produção jurídica desse período antidemocrático é essencial para conhecer as limitações de último grau em matéria penal impostas aos atores criminalistas pelo processo de redemocratização do País. Não há dúvidas da natureza ditatorial desse regime, embora o teor autoritário desse período tenha sido correntemente negado por seus artífices, que afirmavam serem as restrições apenas temporárias, decorrentes do exercício do poder constituinte, potencializado pela “revolução” de 1964 (Fausto, 2010, p. 257). A história comprovou a falsidade do caráter provisório das medidas, principalmente depois de ser baixado o Ato Institucional n. 5, que fechou o Congresso e não tinha prazo de vigência. As justificações para a sua implementação eram genéricas, demasiadamente genéricas. Em primeiro lugar, extirpar a corrupção foi tão somente uma escusa, pois ela é uma questão endêmica, que só pode ser minimizada por meio de um processo contínuo de aperfeiçoamento das instituições, ao fortalecer os mecanismos de pesos e contrapesos dos poderes; para tanto é necessária a pluralidade de forças políticas, esvanecida na concentração de poder da ditadura. Em segundo lugar, a alegação da ameaça do comunismo, apesar de ter surtido efeito em um período bipolar, levou ao perigoso paradoxo da negação da democracia para a sua “afirmação” – tática recorrente em diversos movimentos políticos do século XX – e desconsiderou o fato de serem extremamente remotas as possibilidades de vitória das forças vermelhas no Brasil.
Ademais, o enfraquecimento gradual do Poder Legislativo foi um dos principais sinais do declínio da democracia, por afastar os atos do Poder Executivo do controle dos representantes do povo. A primeira medida nesse sentido foi realizada logo no AI-1. Ocorreu ainda a extinção de partidos políticos pelo AI-2. A UNE foi incendiada. Os estudantes e professores foram fortemente cerceados. A Universidade de Brasília foi invadida um dia após o golpe (Fausto, 2010, p. 258). O governo Médici distinguiu a sociedade dos grupos políticos de oposição acirrada, sendo um exemplo claro da aplicação do direito penal do inimigo no Brasil. Enfim, a ditadura militar brasileira teve uma natureza camaleônica, colorindo e recolorindo os discursos em preto e branco, ocultando a sua face autoritária. Esconder o autoritarismo era uma preocupação constante e simétrica à concentração de poder e às restrições aos direitos fundamentais, tendo como seus marcos a tortura e a violência contra os manifestantes da oposição.
Constatada a existência de um regime ditatorial na história do Brasil, abre-se o campo de pesquisa para a investigação da jurisprudência criminal produzida, a fim de ajustar o sistema penal democrático às exigências do art. 1°, caput, da CF/88. Exempli gratia, não é prudente uma definição muito ampla da fase executória, a ponto de abranger atos entendidos como meramente preparatórios impuníveis à época da ditadura militar, pois a dogmática penal produzida em âmbito democrático não pode ser mais expansionista do que aquela tecida em regimes mais severos. O princípio do limite de último grau histórico em material penal possui a vantagem de estabelecer vedações objetivas à expansão do direito de punir estatal.
Assim, passo a analisar um julgado da Corte Suprema Brasileira à época do regime militar para lá encontrar limitações em último grau ao entendimento do que seja punível no iter criminis de um delito. O Supremo Tribunal Federal tratou do tema, em julgamento de 16 de fevereiro de 1979, no RC 1342/SP, e entendeu que a simples participação em reuniões e palestras sobre o Partido Comunista Brasileiro caracterizava apenas atos preparatórios para a execução do crime de tentativa de reorganização de partido político extinto, conforme previsto no art. 43 do Dec.-lei 898/69(1). Tal entendimento pode ser transposto para os casos de crime de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código Penal, para vedar em último grau histórico a configuração dessa figura típica quando houver a reunião estável de mais de três pessoas para o fim de cometer crimes sem a existência evidente de perigo à paz pública com a formação da célula criminosa. Essa limitação de último grau histórico em matéria penal impõe aos atores criminais democráticos que, ao apreciar o crime de quadrilha ou bando, não o entenda configurado com a adesão da quarta pessoa ao grupo criminoso, exigindo um maior desenvolvimento das atividades para além da simples participação em reuniões com fins criminosos.
Há outra limitação de último grau em matéria penal no HC 58611/RJ, julgado em 31 de março de 1981. Essa decisão estabeleceu que a falsificação de documento público e o seu posterior uso pelo próprio autor da falsificação configuram um só crime, qual seja, o de falsificação de documento público, conforme previsto no art. 297 do Código Penal. Desse modo, quedam-se afastadas quaisquer interpretações das normas penais que queiram, em pleno Estado Democrático de Direito, determinar a configuração de dois crimes nesses casos, infligindo também ao autor o crime de uso de documento falso (art. 304 do CP).
Ao fim, faz-se mister lembrar que o princípio ora proposto é crucial para a concretização do direito à memória, pois o levantamento dos arquivos criminais do regime militar revelará parte da dinâmica do sistema penal autoritário, exibindo o direito para permitir o aparecimento do que há de subterrâneo; lançando obrigações ao sistema penal contemporâneo, como górgonas estrategicamente postas para paralisar os monstros futuros.

Referências Bibliográficas

BORIS, Fausto. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. 324 p.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220 p.

NOTAS
(1) Norma revogada pela Lei 6620/1978.

Igor Pereira, Mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Público e Privado pela UNESA. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogado.

PEREIRA, Igor. O princípio do limite de último grau histórico em matéria penal In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 02-03, fev., 2011.

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