segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Artigo: O direito de falar por último

Por Helios Nogués Moyano e Douglas Lima Goulart

O princípio denominado due process of law (inc. LIV, art. 5º, CF/88) compreende espécie de garantia constitucional inominada,(1) a qual serve de fundamento para o aperfeiçoamento do processo penal por intermédio de construções doutrinárias e jurisprudenciais.
Trata-se de garantia pétrea,(2) a qual apresenta duplo matiz. O primeiro, de ordem principiológica, compreende os vetores de otimização do processo conforme os seus fins. O segundo, mais básico, informa o respeito estrito às normas de direito positivo. É o mínimo processual exigível, retirado da ideia primária de processo como sucessão concatenada de atos previamente estabelecidos em lei.
Nessa concepção, poder-se-ia alocar, como ideia nuclear (devido processo penal positivo), o direito de última manifestação, inerente à defesa, decorrente do art. 403, § 3º, do Código de Processo Penal, uma vez que resta clara a ordem determinada pelo dispositivo:
Art. 403. Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença.
[...]
§ 3º O juiz poderá, considerada a complexidade do caso ou o número de acusados, conceder às partes o prazo de 5 (cinco) dias sucessivamente para a apresentação de memoriais. Nesse caso, terá o prazo de 10 (dez) dias para proferir a sentença.” (grifos nossos).
Contudo, temos notado a adoção, por parte de nossos juízos criminais, de procedimento absolutamente ilegítimo, no qual, convertidos os debates em memoriais, é concedida nova oportunidade de manifestação à acusação, quando a defesa alega matéria prejudicial ao mérito. Segundo tal entendimento, nesta situação, a acusação fala por último.
Fundamenta-se tal diretiva na inexistência de regramento próprio à situação no ordenamento processual penal, haja vista que a ordem das falas, estabelecida pelo artigo suprarreferido, compreenderia norma procedimental, alheia à hipótese de arguição de matéria nova, característica de defesa processual. Desse modo, em homenagem ao princípio do contraditório, tem-se compreendido que a lacuna deve ser preenchida mediante aplicação supletiva e analógica do Código de Processo Civil, onde se prevê o retorno dos autos à parte contrária.
Data vênia, o argumento é insustentável, residindo grande parte do equívoco na pretensão de se estabelecer indevida (con)fusão entre a processualística civil e a penal.
Não se nega aqui, por óbvio, a existência de alto grau de comunicabilidade entre os Estatutos, mas daí a se pretender interdependência há um salto inadmissível, por ser tal ideia absolutamente contrária ao reconhecimento hodierno da maioridade do processo penal. Este, é inegável, possui diretrizes próprias, distintas do processo civil.
Tal entendimento ganha força através da leitura constitucional do processo penal, o qual tem por norte a concretização da ampla defesa na especial circunstância de uma persecução criminal.
Por defesa, deve-se compreender antes um ato de resistência do que um confronto. Este é típico da esfera cível, sendo inviável na seara processual penal, face à desproporcionalidade de forças entre o indivíduo e o Estado. Ao acusado basta resistir, mesmo porque recebe a tutela do princípio do favor rei.
A participação das partes no processo penal é iniciada, portanto, com uma acusação, um ato de afronta, devendo se encerrar, necessariamente, em um ato de resistência. Tal compreensão tem raízes profundas na história, podendo ser antevista em Hobbes, quando se referia à incolumidade do foro íntimo do cidadão frente ao Estado leviático:
“[...] se o soberano não pode intrometer-se no foro interno, quando o fizer não resta outra alternativa senão reconhecer que nasce aí um direito de resistência do súdito.”(3)
Frente a essas premissas, observa-se que as alegações finais (ou memoriais escritos) compreendem o ápice da resistência, estando a sua razão de ser diretamente atrelada à ordem processual comum, a saber: primeiro a acusação, após, e sempre, a defesa.
Contudo, em uma das poucas vezes em que foi chamado a decidir sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal avalizou a inversão ora suscitada, sugerindo que, “quando a defesa argúi questão preliminar nas alegações finais, é legítima a abertura de vista e manifestação do Ministério Público, ambos com respaldo legal na aplicação analógica do art. 327, primeira parte, do Código de Processo Civil, como previsto no art. 3º do Código de Processo Penal, pois em tal caso é de rigor que a outra parte se manifeste, em homenagem ao princípio do contraditório, cujo exercício não é monopólio da defesa.”(4)
A respeito do julgado, vale a transcrição do art. 327 do CPC:
Art. 327. Se o réu alegar qualquer das matérias enumeradas no art. 301, o juiz mandará ouvir o autor no prazo de 10 (dez) dias, permitindo-lhe a produção de prova documental [...].” (grifo nosso).
Em divergência ao posicionamento firmado no Acórdão, temos o voto prolatado pelo Ministro Marco Aurélio, o qual sustenta a impropriedade da concessão de oportunidade final de manifestação à acusação:
Senhor Presidente, encerra-se a instrução com as alegações finais, ficando o processo pronto para ser sentenciado. O Código de Processo Penal revela que se observa, sempre, por último, a fala da defesa. Esta regra é categórica, peremptória, muito cara, considerado o devido processo legal e o direito de defesa. Preliminares porventura suscitadas, relativas à causa, não sugerem, como as demais matérias também, reabertura de vista ao Ministério Público para aditar as alegações primeiras. A derradeira oportunidade que o Ministério Público tem para falar nos autos, como titular da ação penal, é nas alegações finais, que se situam em período anterior ao pronunciamento da defesa. Houve a quebra da ordem natural das coisas, importantíssima para que se tenha como observado o devido processo legal, tanto que está no Código de Processo Penal. Por isso ou por aquilo, não quero saber, tivemos o afastamento da regra segundo a qual, em primeiro lugar, apresenta alegações finais o Ministério Público e, em segundo lugar, a defesa.
Peço vênia ao Ministro-Relator para concluir que procede o vício. Quando o Juízo abriu uma nova oportunidade ao Ministério Público para falar acabou criando, no tocante às alegações finais da defesa, transgredindo a ordem ditada pelo Código de Processo Penal, um contraditório indevido, à margem, portanto, do que está normatizado. Concedo a ordem, declarando a nulidade do processo a partir dessa indevida inversão.”(5)
Conforme visto, o Ministro Marco Aurélio adota como razões de decidir a infringência aos princípios da ampla defesa e do due process of law, deixando claro que o procedimento ora avaliado compreenderia verdadeira “quebra da ordem natural das coisas”.
Em respaldo à linha principiológica adotada por Marco Aurélio, cabe ressaltar que, ao validar tal procedimento, o Judiciário não está elaborando interpretação ampliativa de regra processual, mas, muito pelo contrário, estabelece indevida exegese restritiva de garantia pétrea, prevista no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal de 1988. Em palavras simples, rema contra a maré do processo penal.
Mas não é só. Ainda que ignorado o valor da norma constitucional, resta evidente ser absolutamente impraticável a exegese proposta na ementa do julgado.
Isso porque o art. 327, primeira parte, do Código de Processo Civil tem aplicação condicionada às matérias previstas no art. 301 do referido Estatuto Processual, não havendo, aí, menção a grande parte das situações passíveis de serem alegadas em preliminar no processo penal, v.g., o pagamento do tributo nos crimes fiscais, dentre outras formas de extinção da punibilidade.
Logo, não havendo coincidência temática entre as matérias elencadas na norma condicionante e no processo penal (caso concreto), resta evidente a impropriedade técnica da operação.
No mais, constata-se que o raciocínio possui defeito tautológico, uma vez que é construído sob terreno infértil, caracterizado pela indevida confusão estabelecida entre silêncio normativo e lacuna. Ora, lacuna denota falha, defeito, incompletude. Em sentido oposto, silêncio transmite a ideia de ausência de exceção. Neste caso, o Código silencia, não erra, determinando que a defesa há de falar por último, ainda quando alegue preliminares. Assim não fosse, qual seria a razão do não preenchimento do tema quando das recentes reformas processuais, em que foram alterados artigos diretamente ligados ao assunto? Convém frisar que também o Código de Processo Penal Militar nada prevê a respeito do retorno da fala à acusação,(6) no que é seguido pelo atual projeto de Código de Processo Penal.(7)
Resta evidente, portanto, a disparidade entre a processualística civil e a penal, sem o que bastaria a edição de um único estatuto. É visível, ainda, a inexistência de relação hierárquica entre os Códigos, havendo apenas especialização. Assim, ao processo civil, os interesses civis; ao processo penal, as garantias individuais, indisponíveis por natureza.
Por fim, sem desmerecimento de todas as construções hermenêuticas supra alinhavadas, nunca é demais relembrar o simples, ora manifestado na lição basilar de que toda interpretação desfavorável ao réu merece aplicação restritiva, também por força do princípio do favor rei.
Nessa esteira, de duas uma: ou se prolata sentença imediatamente após as manifestações da defesa; ou se dá vista à acusação, retornando-se, ainda outra vez, à defesa, para só então seguirem os autos conclusos para sentença.
Esta última hipótese, acreditamos, compreende um meio termo interessante, capaz de dar abrigo à máxima efetividade do contraditório, sem descurar das exigências intrínsecas à ampla defesa.

NOTAS

(1) FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 46.
(2) Art. 60, § 4º, inc. IV, CF/88.
(3) Apud ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 136.
(4) HC nº 76.420-1/SP, grifo nosso.
(5) Idem, grifo nosso.
(6) Art. 428, CPPM.
(7) “Art. 267. Encerrada a instrução, as partes serão intimadas para apresentarem alegações finais no prazo sucessivo de 10 (dez) dias. § 1º O assistente e a parte civil apresentarão suas alegações finais após o Ministério Público e antes do acusado, no prazo de 5 (cinco) dias.”

Helios Nogués Moyano, Advogado criminal em São Paulo. Douglas Lima Goulart, Advogado criminal em São Paulo.

Como citar este artigo: MOYANO, Helios Nogués e GOULART, Douglas Lima.O direito de falar por últimoIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 15-16, jan., 2011.

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