Se dependesse de criminalistas e de especialistas em execução penal, o ex-secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, não teria perdido seu emprego. Indicado para assumir a Secretaria Nacional de Politicas sobre Drogas, Abramovay foi desconvidado para assumir o cargo depois de defender em entrevista à imprensa a aplicação de penas alternativas para pequenos traficantes. O desconvite teria partido da própria presidente Dilma Rousseff, que defende posição contrária. A maioria dos especialistas e estudiosos no assunto, contudo, concorda com Abramovay.
Aplicar penas mais brandas para os traficantes primários, à primeira vista pode cheirar a um estímulo para jovens e adolescentes criarem vínculos com o crime. No entanto, defensores enxergam o encarceramento como um sistema ultrapassado no combate ao narcotráfico. Um dos que enxergam na flexibilização das penas uma prática positiva é o penalista Sergio Salomão Shecaira, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Ao defender o abrandamento das sentenças, ele argumenta que “não há como comparar a mulher que leva a droga para o marido na prisão, por exemplo, com uma pessoa que fica na favela com um caminhão carregado de entorpecentes”.
O Brasil tem hoje 500 mil detentos, revela o Departamento Penitenciário Nacional, ligado ao Ministério da Justiça. Em uma década e meia, entre 1995 e 2010, a população carcerária triplicou. Ao longo desses anos, porém, o perfil do detento mudou. Em 1995, a maior parte deles ia parar atrás das grades por conta de crimes de natureza patrimonial, como furto e roubo. Agora, um quinto deles está nas prisões em decorrência do tráfico de drogas. “Ou seja, temos cem mil problemas. É mais imposto, é mais gente encarcerada criando situações graves e saindo pior do que entrou”, alerta Shecaira.
De acordo com o penalista, não há uma definição legal precisa do que seria o tráfico. Ao contrário do que acontece com outros tipos penais, como homicídio, roubo e peculato, o tráfico não conta com o que os operadores do Direito chamam de nomen juris. Por exemplo, o ato de uma pessoa matar a outra recebe o nomen juris de homicídio e, no Código Penal brasileiro, corresponde ao artigo 121.
Nem a própria Lei de Drogas, a Lei 11.343, de 2006, define o que é tráfico. “Embora a gente olhe o artigo 33 da legislação e verifique que aquilo fala de tráfico ou uso, não há uma definição legal”, explica Shecaira. A conceituação se dá por meio de 18 verbos: “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Essa indefinição é abordada pelos pesquisadores Luciana Boiteux, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Beatriz Vargas, Vanessa Oliveira Batista e Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo o relatório de pesquisa Tráfico de Drogas e Constituição, “no campo jurídico, a estratégia tem sido a seguinte: os tipos penais são genéricos e não diferenciam a posição ocupada pelo agente na rede do tráfico, sendo a escala penal altíssima, com ausência na proporcionalidade das penas e banalização da pena de prisão”.
A pena restritiva de direitos, apelidada de pena alternativa, é prevista no parágrafo 4º do artigo 33. A nova redação da Lei 6.368/1976 aprofundou a diferenciação entre usuário e grande traficante. Enquanto os usuários primários e com bons antecedentes criminais poderiam responder pelo crime de tráfico com penas alternativas, aqueles que viviam do lucro vindo dos entorpecentes tiveram sua pena agravada para até 20 anos de prisão. Antes, os traficantes cumpriam pena de três a 15 anos. Resultado: os traficantes primários ficaram à mercê dos juízes, que devem classificar a conduta em alguma das duas categorias.
Para a pesquisadora Nalayane Mendonça Pinto, na tese de doutorado Penas e Alternativas: Um estudo sociológico dos processos de agravamento das penas e de despenalização no sistema de criminalização brasileiro (1984-2004), defendida na UFRJ, a mudança apenas maquia um endurecimento na legislação. Isso porque, explica, retira “a possibilidade do pequeno traficante que hoje é condenado à pena mínima, de pleitear a substituição por penas restritivas de direitos (alternativas), sendo aprovada esta lei a pena mínima será de 5 anos, o que impossibilita a substituição”.
De acordo com a pesquisadora, há “no discurso que defende o agravamento das penas um recurso retórico para gerar uma expectativa de redução e controle da criminalidade, sem, contudo produzir efeitos reais”.
Assim, a realidade vem se mostrando diferente do que está escrito no papel. É o caso do adolescente que fuma um cigarro de maconha no final de semana ou da mãe que é flagrada com cocaína cujo verdadeiro destino seria o filho encarcerado. A solução para a situação, acredita Augusto de Arruda Botelho, vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), é a aplicação de penas alternativas no caso concreto. “O próprio juiz aplica a pena que considerar mais conveniente. Não é só pagar três cestas básicas, como insistem alguns. Pode ser fixado, por exemplo, que a pessoa preste serviços à comunidade”.
De acordo com Botelho, não há como definir quem é o pequeno traficante com base em tabelas de quantidade de drogas, ou pelo menos apenas nelas. “A gente corre o risco de endurecer demais a lei e abrir brechas para abusos, como aconteceu com a Lei Seca [a Lei 11.705, de 2008]. Com ela, motoristas embriagados saem às ruas com amparo da lei”, opina.
Já Leonardo Sica, membro do conselho diretor da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), explica que “é muito difícil determinar o que é o pequeno traficante na lei, mas fácil fazer isso quando se analisa o caso concreto. Seria ideal se houvesse a liberdade para os juízes definirem quem é essa pessoa e pra aplicar qualquer medida que não a leve à prisão”.
Confissão legislada
Thiago Gomes Anastácio, também associado ao IDDD, é outro defensor das penas alternativas. Ele vê a possibilidade de aplicação delas como uma inovação legislativa. “É um dos fatos de evolução contra o sistema prisional”, acredita.
Anastácio batizou o artigo 33, parágrafo 4º, de “cláusula de não-encarceramento”. “Essa é a primeira vez que o Estado confessa que a cadeia não serve para nada e, por isso, é um grande avanço. A ideia central disso tudo é que a prisão profissionaliza o crime. Por isso, é uma conquista da advocacia”.
O criminalista chama atenção para um fato: a crença de que os juízes devem combater o crime. Segundo ele, o caminho usual de um processo desse tipo é o réu ser condenado nas instâncias inferiores e quando o caso chega a um tribunal superior, o acusado é sentenciado com uma pena restritiva de direitos. O que acontece é que, explica Anastácio, os juízes, em posição “inquisidora e medieval”, se valem da morosidade do Judiciário para castigar os réus primários.
“O magistrado usa a lentidão da Justiça para punir o acusado. Ele manda o réu pra prisão por dois ou três meses só que, lá na frente, a instância superior reconhece a cláusula de não-encarceramento. Ou seja, alguém que não deveria ficar preso, acaba preso”, explica.
Para Anastácio, a lei mudou para atendar às classes mais altas. “É preciso parar de hipocrisia”, diz. “Jovens de classe média e alta não estão sendo presos por roubo. A legislação mudou porque as drogas chegaram à classe média e porque os filhos da classe média chegaram ao cárcere”.
Defesa da causa
O debate é polêmico e coincide com a desistência de Pedro Abramovay ocupar o cargo máximo na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Enquanto o Ministério da Justiça insiste que foi ele quem virou as costas para o órgão, a imprensa aponta o ministro da pasta, José Eduardo Cardozo, como o articulador da dispensa do advogado. Especula-se que pivô da separação teria sido a posição do quase secretário nacional defendida no jornal O Globo.
Abramovay disse ao jornalista Jailton de Carvalho que a superlotação nos presídios se deu por causa da mudança na legislação que rotulou o tráfico de drogas em apenas duas categorias. Em 2009, Pedro Abramovay, então secretário de Assuntos Legislativos, e o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) foram autores de um projeto de lei que previa a aplicação de penas alternativas para os traficantes primários. De acordo com ele, essas pessoas seriam aquelas que não são nem usuário, nem traficante, ocupando uma faixa intermediária.
"O usuário não tem prisão e, do jeito que está hoje, praticamente não tem pena. E para o traficante há uma pena altíssima. Só que a realidade é muito mais complexa, porque você não tem só essas duas divisões. Depois da lei, houve uma explosão carcerária. Em 2006, eram 60 mil pessoas presas por crimes relacionados a drogas. Hoje, há 100 mil pessoas presas. Não dá para ter na cadeia 40 mil pessoas que não deveriam estar lá. A gente está pegando quem não tem ligação com o crime organizado, botando na prisão e, pouco tempo depois, já com ligação com o crime organizado, devolvendo-o à sociedade. Temos de fazer uma opção entre disputar o pequeno traficante, para reintegrá-lo à sociedade, ou desistir dele, entregando-o ao crime organizado", disse na entrevista.
Ao comentar o caso, Augusto de Arruda Botelho classificou a saída de Abramovay do Ministério da Justiça como “um retrocesso na política anti-drogas” do órgão. “A questão precisa ser ao menos debatida. Nós estamos incorrendo em políticas sabidamente ineficazes. Não se pode falar genericamente sobre o assunto”, diz.
Shecaira também reprova a saída de Abramovay. “Ele havia realizado discussões sobre o assunto sob a ótica da academia. É a descontinuidade de um processo que se iniciou na FAO e que encontrava respaldo na própria lei”, declarou.
O assunto não é propriamente uma novidade. O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, permitiu que o juiz aplicasse pena alternativa para os crimes de tráfico. Como na Constituição Federal o tráfico é equiparado a um crime hediondo, o culpado estava impedido, antes do posicionamento da corte, de cumprir esse tipo de sanção.
Em julgamento ocorrido no Supremo em setembro de 2010, os ministros concederam Habeas Corpus a uma pessoa condenada a um ano e oito meses por tráfico de drogas e, incidentalmente, declararam inconstitucional o artigo 44 da Lei 11.343/2006. Era esse dispositivo que vedava a conversão da reclusão em pena restritiva de direitos.
Na ocasião, o ministro Ayres Britto, relator do processo, declarou que “ninguém mais do que o juiz da causa pode saber a melhor pena para castigar e ressocializar o apenado”.
Uma coisa leva à outra
Renato Marcão, penalista e promotor de Justiça em São Paulo, lembra que a pena de prisão é a última medida a ser tomada, “a mais extrema”. “Nós não estamos atacando de forma eficiente e inteligente o núcleo do problema. A nossa lei, por exemplo, prevê o tratamento para os criminosos dependentes. Mas acontece que essa garantia não vem sendo cumprida”, declara. Segundo Marcão, o Brasil possui, hoje, 600 mil dependentes de crack. “Esse é um primeiro levantamento do Ministério da Saúde, pode ter mais gente”, atenta.
Ao falar da questão das drogas, quase sempre se chega a um assunto: a legalização delas. Para Anastácio, por exemplo, a tendência da sociedade é que esse momento chegue. “Primeiro nós não mandamos o usuário pra cadeia, depois nós não mandamos o traficante primário. É inadiável que as drogas tidas como leves sejam legalizadas”, prevê.
Por isso, ele acredita que um bom caminho é investir em políticas de punição, estimulando o uso responsável. “Tem campanha para consumo consciente do álcool, não tem?”, indaga. Nesta semana, Fernando Henrique Cardoso defendeu a descriminalização do uso de todas as drogas.
Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2011
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