A derrocada das teorias que atribuíam à pena uma função pretensamente ressocializadora e a ascensão de uma ideologia que aponta como objetivo da execução a mera segregação e inabilitação do sujeito encarcerado, bem como o encarceramento em massa, são consequências, na dicção de alguns autores(1), do desmonte do Estado de bem-estar social, tratando-se de fenômeno que ocorre em escala mundial.
A supressão de benefícios securitários e a retirada dos investimentos sobre a prestação de direitos sociais – imperativos da política econômica neoliberal – geram a demanda por uma resposta à intensificação da concentração de renda e aos conflitos sociais decorrentes desse fato. Essa resposta vem pela hipertrofia da face autoritária do Estado que, transformando questões sociais em questões de polícia, cuida da segregação e da estigmatização dos setores da população excluídos do mundo do trabalho e da assistência social pelo próprio movimento do Estado economicamente abstencionista e gerador de miséria. Nesse diapasão, Wacquant atribui a esse Estado penal o nome de “Estado centauro”, que possui “cabeça liberal sobre corpo autoritário”, ou seja, trata-se de um Estado que “aplica a doutrina do laissez faire, laissez passer ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências”(2).
Ainda que a hipertrofia do sistema punitivo seja um fenômeno internacional, conforme já mencionado, é fato que seus reflexos são mais drásticos nos sistemas penais marginais, situados em contextos sócio-econômicos nos quais a nova ideologia inabilitante alia-se às precariedades conjunturais e estruturais de que padece o Terceiro Mundo. Nessa esteira, o encarceramento em massa, somado à desídia e à falta de estrutura, permite que se diga que, no Brasil, o sistema penal consiste em um aparato genocida.
A tônica genocida, aliás, é a nota distintiva que separa o sistema penal periférico das realidades verificadas em países centrais, de modo que o número de mortes provocadas pelos sistemas penais marginais, de acordo com Zaffaroni, é o elemento mais notório a propiciar que tais sistemas sejam deslegitimados pelos próprios fatos(3).
A Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, firmada em 1948 e aprovada e ratificada pelo Brasil, define genocídio como a prática de assassinatos, danos graves à integridade física ou mental ou a submissão intencional a condições de existência que ocasionem a um grupo destruição física total ou parcial, dentre outras ações cometidas com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Nesse diapasão, a atribuição da qualidade de genocida aos sistemas penais periféricos não configura qualquer exagero. O viés genocida do sistema criminal marginal decorre da seletividade da violência penal, que se baseia em um código latente discriminatório (second code, metarregras ou basic rules) pautado em substratos regionais, econômicos e raciais(4). Em outras palavras, desde as abordagens policiais até o encarceramento, a clientela sobre a qual recai a violência do sistema é majoritariamente composta por pobres, migrantes, negros e favelados(5). Aceitando-se que a nova cultura de controle do crime, conforme já visto, tem por objetivo a mera inabilitação e neutralização de segmentos indesejados, sem que se apresente qualquer preocupação mais consistente em relação à garantia dos direitos humanos do indivíduo selecionado pelo sistema penal, tem-se que o sistema penal converte-se em um aparato genocida, responsável por assassinatos e graves danos à integridade dos grupos perseguidos. Por certo, a seletividade da violência não é fenômeno que se constate apenas nos sistemas marginais; o que justifica a identificação desses sistemas como genocidas é a constatação dessa seletividade aliada à quantidade espetacular de mortes provocadas por esses sistemas durante todas as etapas da persecução criminal e da execução das penas.
Barcellos sustenta, baseado no cruzamento de fontes oficiais e jornalísticas, que a Polícia Militar tenha matado entre 7.500 e 8 mil pessoas no Estado de São Paulo, entre 1970 e 1992(6). No que diz respeito às mortes ocorridas durante a execução da pena, Nunes informa que, entre 1999 e 2002, mais de 120 presos foram mortos no Estado de São Paulo apenas durante motins, o que significa que ocorre, aproximadamente, um “massacre do Carandiru” a cada três anos no Estado(7). Esse número, por óbvio, é ínfimo quando comparado às centenas de mortes no cárcere ocorridas em outras circunstâncias, seja por situações de violência perpetradas por agentes de segurança e por presos, seja pela ausência de assistência adequada à saúde. Conforme colocado por Goifman, no sistema penitenciário brasileiro, a morte aparece como rotina, sendo os internos forçados a aprender a conviver com a constante perspectiva real de morte(8). Tendo-se em conta que, de todas essas mortes, a quase totalidade das vítimas é composta de negros ou mulatos, migrantes e favelados, tem-se incontestavelmente uma situação de genocídio. As prisões marginais, aliás, afiguram-se como instituições de sequestro peculiares, visto que acumulam a função disciplinar e o caráter genocida, nos moldes dos campos de concentração nazistas, onde a morte do interno coloca-se como consequência – colateral ou objetivada – da atividade institucional de adestramento dos corpos(9).
Adotando um corte específico na questão étnica, são nesse sentido as conclusões da pesquisa de Flausina, que postula que o genocídio da população negra é um projeto de Estado advindo do processo de abolição da escravatura, momento em que as instâncias penais de controle passaram assumir o papel de contenção das demandas do contingente negro marginalizado, convertendo seus corpos em “corpos matáveis”. Nesse sentido, manifesta-se a autora: “A apropriação da categoria genocídio para se retratar a realidade brasileira é incontestavelmente devida no que se refere às práticas levadas a cabo para a eliminação do contingente negro. Ou seja, não há o que se discutir quanto à aplicação do conceito quando o foco está direcionado para os efeitos das ações institucionais”(10).
Ainda que, a princípio, a predileção do sistema repressivo por alguns grupos étnicos, sociais e regionais seja pública e notória, a enunciação do sistema penal brasileiro como aparato genocida tem como finalidade a desnaturalização da violência institucional. Enxergar um aparato genocida em um sistema no qual os discursos do poder tentam identificar-se com os conceitos abstratos de ordem e de justiça parece ser um primeiro passo para uma emancipação ética; uma emancipação que nos faça começar a procurar novos rumos para as situações-problema que hoje chamamos de “questão penal”.
(1) Nesse sentido, por exemplo, são as reflexões de David Garland. Garland, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. trad. esp. Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.
(2) Wacquant, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. trad. port. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 55.
(3) Zaffaroni, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. trad. port. de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, pp. 38-40.
(4) Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. trad. port. de Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 104-106.
(5) Shecaira, Sergio Salomão. Tolerância zero. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 17, n. 77, 2009, pp. 274-275.
(6) Barcellos, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. 7ª ed. São Paulo: Record, 2006, p. 167.
(7) Nunes, Adeildo. A realidade das prisões brasileiras. Recife: Nossa Livraria, 2005, p. 157.
(8) Goifman, Kiko. Valetes em slow motion: a morte do tempo na prisão: imagens e textos. Campinas: UNICAMP, 1998, p. 100.
(9) Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. port. de Raquel Ramalhete. 28ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 143-161.
(10)Flausina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 136.
Bruno Shimizu
Defensor Público do Estado de São Paulo. Mestrando em Criminologia pela USP.
Defensor Público do Estado de São Paulo. Mestrando em Criminologia pela USP.
Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010.
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