No âmbito do Estado de Minas Gerais, a experiência no foro criminal tem revelado ser extremamente comum o início de persecuções penais em virtude de notitia criminis anônima, na maioria das vezes realizada por meio do “Disque Denúncia”, também conhecido como “Disque 181”, serviço implantado pela Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais em parceria com o Instituto Minas pela Paz.
Unificando, no ponto, a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais e o Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais, esse serviço ostenta os moldes atuais desde o início do ano de 2008.
Para se ter uma ideia de sua utilização, destaca-se, com base em dados fornecidos pela Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2009), que, nos primeiros três meses de funcionamento, o serviço recebeu cerca de trezentas e noventa mil ligações, sendo que, desse total, doze mil, quinhentas e trinta e seis “denúncias” foram encaminhadas para investigação, resultando em cento e noventa e cinco pessoas presas, trinta e seis adolescentes apreendidos e trinta e nove foragidos da Justiça recapturados.
Cuidando-se de tema rotineiro na administração da justiça criminal, é de se indagar, então, qual o valor da notitia criminis anônima no processo penal brasileiro.
Inicialmente, ressaltam-se as brilhantes palavras de José Frederico Marques a respeito do tema: “No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código penal, arts. 339 e 340), o que implica a exclusão do anonimato na nottia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados, a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva ou ilicitamente.Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da autoridade policial, quando a delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu autor. Se, no dizer de G. LEONE (Giovanni Leone, in Ugo Conti, ob. cit., vol. I, p. 565), não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido nottitia criminis inqualificada (Elementos de Direito Processual Penal. Vol. I. 2ª edição, atualizada. Campinas: Millennium, 2000, pág. 147).
A chamada “denúncia anônima” é admitida no direito brasileiro, não estando alcançada pela cláusula proibitória prevista no inciso IV do art. 5º da Constituição, pois, como esclarece o ministro Carlos Ayres Britto, “há uma distinção entre manifestação de pensamento e delação anônima para fins penais”, sendo que “a manifestação do pensamento é a veiculação de algo elaborado pela mente; é o produto de uma reflexão; logo, traduz-se numa doutrina, tese, crítica, ponto de vista ou opinião racionalmente fundamentada”, ao passo que “delações anônimas na esfera penal não passam de simples notícias de fatos empíricos, legalmente descritos como infrações penais” (excertos do voto proferido no habeas corpus nº 84.827/TO, 1ª Turma, rel. min. Marco Aurélio, j. em 07.08.07).
Cuida-se, caso adequadamente compreendido, de importante instrumento para o combate à criminalidade que assola o Brasil, tendo em vista que o anonimato possibilita a preservação da integridade física e psíquica do denunciante e de sua família, resultando, destarte, em maior participação da população na repressão dos delitos.
Contudo, se é certo que a delação apócrifa não está alcançada pela vedação inserta no inciso IV do art. 5º da Constituição, não menos certo é que essa delação não se presta, por si só, a ensejar a instauração de um procedimento formal de investigação ou a embasar ação penal, prestando-se, apenas, se revestida de seriedade e concretude (o que afasta os “denuncismos” irresponsáveis), a justificar, pela polícia, a realização de diligências investigatórias, com discrição e comedimento.
Caso a delação anônima resulte na coleta de elementos de informação relacionados a algum delito, esses elementos poderão ensejar a instauração de um procedimento investigativo formal, bem como o ajuizamento de uma ação penal, não havendo que se falar em sua ilicitude a pretexto de aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada (§ 1º do art. 157 do Código de Processo Penal, acrescido pela Lei nº 11.690/08), haja vista que a delação apócrifa não revela, por si só, conforme demonstrado, ilicitude.
Contudo, é de se destacar que a delação anônima, enquanto elemento embrionário da investigação criminal, não pode ser valorada como prova no processo penal em desfavor do réu, haja vista que constitui elemento meramente informativo (o que atrai a incidência da vedação prevista no art. 155 do Código de Processo Penal, com a redação da Lei nº 11.690/08), bem como o anonimato impede que o acusado se defenda, adequadamente, dos fatos articulados na notitia, cerceando, assim, seu direito constitucional à ampla defesa.
Enfim, é esse, segundo cremos, o tratamento que se deve dar à questão da “denúncia anônima”, cuidando-se, como se vê, de instrumento importante, mas de valor relativo, para o combate à criminalidade no Brasil.
Gustavo Henrique Moreira do Valle, Juiz de Direito - MG.
Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010.
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