O presente estudo foi feito utilizando-se fontes doutrinárias, acadêmicas e institucionais portuguesas, onde percebemos que em Portugal, como no resto do mundo, a diminuição das fronteiras surgidas a partir da globalização contribuiu para a modificação dos comportamentos em todos os níveis. Dessas mudanças, resultaram o aparecimento de novas formas de criminalidade, cada vez mais sofisticadas e imunes aos métodos tradicionais de investigação policial.
Brasil e Portugal, embora possuam sistemas processuais e penais parecidos, têm diferenças gritantes no âmbito da investigação criminal. Em Portugal, a direção da investigação é atribuída à magistratura ministerial, enquanto que no Brasil os trabalhos de investigação estão sob a direção de delegados de Polícia.
Diante do fracasso do inquérito policial no Brasil, instrumento que não tem cumprido com seu objetivo de auxiliar o Ministério Público na formação daopinio delicti, a função investigativa dos representantes ministeriais tem ganhado espaço no seio das comunidades, seguindo uma tendência mundial onde promotores criminais vem ocupando o comando das investigações criminais de maneira cada vez mais efetiva.
Em Portugal, para que a democracia fosse restabelecida, foram adotadas uma série de medidas (processo de descolonização no continente africano e a instituição de uma renovada constituição portuguesa em 1976), tendo as entidades policiais também passado por um processo de modernização, o que implicou na democratização dessas organizações.
Cabe registrar que em Portugal, como no Brasil, não vigora o Sistema de Polícia Única, existente, por exemplo, no Uruguai. Em Portugal coexistem inúmeras instituições policiais, cujas atribuições, eventualmente, sobrepõem-se, a saber: Polícias ostensivas (uniformizadas): Polícia de Segurança Pública (PSP), Guarda Nacional Republicana (GNR), Guarda Prisional (GP), Polícia Marítima (PM), Polícia Florestal (PF) e Polícias Municipais (PM). Polícias de investigação criminal: Polícia Judiciária (PJ), Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Serviço de Informações de Segurança (SIS) e a recém criada Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE).
Tendo o contexto democrático tomado conta de Portugal, os interesses social e político passaram por elevar as polícias a um nível europeu de atuação, com exigências de cumprimento legal e de funcionamento eficaz e moderno. Advertências de agências de direitos humanos internacionais também contribuíram para a democratização das forças policiais portuguesas. Esse novo modelo policial, voltado à incondicional defesa dos direitos dos cidadãos, acabou por transformar estas instituições em elementos-chave no processo de democratização da sociedade.
A Polícia Judiciária de Portugal (PJ)
Principal instituição policial de investigação criminal do país, a PJ (ou simplesmente judiciária) possui viés direcionado à elucidação de delitos em geral, de grande porte, notadamente ao crime organizado, ao tráfico de entorpecentes, ao terrorismo, à corrupção e aos crimes financeiros e econômicos. A PJ portuguesa, no âmbito administrativo, está subordinada ao Ministério da Justiça e, no âmbito de ação, age sob a orientação e dependência funcional do Ministério Público, que em Portugal é enquadrado como magistratura.
Nos termos da Lei Orgânica e da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), à PJ cabe coadjuvar as autoridades judiciárias na investigação e desenvolver ações de prevenção, detenção e investigação ou que lhe sejam cometidas pelas autoridades judiciárias competentes.
A Polícia Judiciária possui semelhança com a Polícia Federal do Brasil, eis que vocacionada, tal como a PF brasileira, a investigar crimes de maior lesividade à nação, como tráfico internacional de drogas e armas, homicídios, evasão de divisas, corrupção, crimes eleitorais, etc. Entretanto, é na estrutura organizacional da PJ que residem as grandes diferenças em relação à PF brasileira.
Na PJ portuguesa vige a carreira única, onde todos os integrantes da carreira policial, detentores de nível superior em diversas áreas (35% das vagas devem ser preenchidas por bacharéis em Direito) ingressam no órgão como inspetores, com idade até 30 anos, através de concurso público (sistema idêntico ao brasileiro).
Cabe salientar que todo policial ingressa na PJ por uma única porta (inspetor), entretanto, para passar de um cargo para outro os interessados devem submeter-se a concurso interno de provas e títulos. Assim, um inspetor pode iniciar e encerrar sua trajetória profissional num mesmo cargo, caso não deseje progredir verticalmente.
O inquérito policial em Portugal denomina-se apenas inquérito — Artigo 262 do CPP, entretanto, essa peça é da titularidade do Ministério Público (Artigo 53, “b”, do CPP), já que lá não existe a figura do Delegado de Polícia. No sistema português não há o chamado indiciamento, todavia, no âmbito do inquérito (já no juízo de instrução), denomina-se “arguido” o sujeito suspeito de ter praticado uma conduta tida como criminosa. Cabe ao Juiz Instrutor, diante da existência de fundados indícios, constituir o suspeito como arguido, devendo ser o arguido cientificado sobre essa indicação.
Quando da prisão de um indivíduo em flagrante delito lavra-se o Termo de Identidade e Residência (TIR), sendo o detido apresentado ao juiz de instrução para fins de interrogatório, não cabendo à polícia judiciária a realização de interrogatórios.
Malgrado a existência de uma carreira única bem constituída, com uma política de progressão que procura valorizar as valências técnicas, as experiências profissionais e o orgulho policial, o capital humano da Polícia Judiciária tem reclamado melhores condições de trabalho nos últimos tempos, sobretudo com relação ao congelamento dos salários em Portugal.
A Polícia de Segurança Pública (PSP)
A Polícia de Segurança Pública é uma força policial que possui a missão de defesa da legalidade democrática, de garantia da segurança interna e de defesa dos direitos dos cidadãos. Apesar de ter muitas outras funções, a PSP é conhecida por ser a força de segurança responsável pelo policiamento fardado e ostensivo nas grandes áreas urbanas de Portugal, estando o policiamento das áreas rurais reservado, normalmente, à Guarda Nacional Republicana (GNR).
Em virtude de sua visibilidade nas ruas das cidades de Portugal, com 22 mil policiais, a PSP tornou-se a polícia por excelência em Portugal (a que possui maior contato com a população em geral), já que a PJ atua de forma não ostensiva em suas investigações e a GNR possui atuação nas zonas de campo e agrícola de Portugal.
A Guarda Nacional Republicana (GNR)
Trata-se de uma força policial de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e dotada de autonomia administrativa, com jurisdição em todo o território nacional e no mar territorial, cuja atuação principal se dá nas áreas rurais do país. Pela sua natureza e polivalência, a GNR encontra o seu posicionamento institucional no conjunto das forças militares e das forças e serviços de segurança, sendo a única força de segurança com natureza e organização militares, caracterizando-se como uma Força de Segurança Mista, com atuação entre Forças Armadas e Forças Policiais.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras constitui-se em serviço de segurança, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Administração Interna, com autonomia administrativa. Tem como finalidade fundamental controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e atividades de estrangeiros em território português, bem como coordenar e executar as ações relacionadas à atividade migratória. É a instituições responsável pela emissão de passaportes em Portugal.
Enquanto órgão de polícia criminal, o SEF atua no processo, nos termos da lei processual penal, sob a direção e em dependência funcional da autoridade judiciária competente, realizando as ações determinadas e os atos delegados pela referida autoridade.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras possui estrutura de carreira única e com ciclo completo de polícia, onde os interessados ingressam na instituição no cargo de inspetor-adjunto, via concurso externo, fazendo carreira de acordo com as qualificações técnicas e antiguidade da cada um, via concurso interno.
Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica
A Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica, ou simplesmente ASAE, é a autoridade administrativa especializada para atuar nas áreas de segurança alimentar e fiscalização econômica de Portugal, tais como: tabacos, falsificações em geral, direito autoral, jogos ilícitos, vendas on-line, etc.
A ASAE também é um órgão de polícia criminal (segundo disposição do Artigo 5º do Decreto-Lei 194/2012), dependente do Ministério da Economia, responsável pela avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar, bem como pela disciplina do exercício das atividades econômicas nos setores alimentar e não alimentar. Age como órgão de fiscalização e de controle de mercado.
As Polícias Municipais
As Polícias Municipais em Portugal fazem parte de departamentos especiais das Prefeituras Municipais (lá chamadas de câmaras municipais), cuja missão é fiscalizar o cumprimento dos regulamentos municipais e de outras normas legais de interesse local, tendo como principais atribuições, em coordenação com as demais forças de segurança pública: Vigilância de espaços públicos ou abertos ao público; Vigilância nos transportes urbanos locais; Programas de segurança junto às escolas ou de grupos específicos de cidadãos; Guarda de prédios públicos municipais e equipamentos públicos municipais; Fiscalização do trânsito rodoviário na área municipal; Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
As polícias municipais têm atribuição lavratura de auto de notícia de crime por ilícito de mera ordenação social, de transgressão por fatos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de ato legalmente devido no âmbito das relações administrativas. Também podem realizar a “identificação” e a revista de suspeitos de prárica delitiva, bem como imediata condução dos detidos à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
Conclusão
Diante da apresentação das principais forças de segurança pública de Portugal, observamos haver importantes diferenças entre as instituições policiais do Brasil e Portugal, a saber:
- Em Portugal há polícias nacionais (PJ, PSP, GNR) e policiais municipais, enquanto que no Brasil as forças policiais são organizadas pela União (PF, PRF e PFF) ou pelos Estados (Polícias Civis e PMs), inexistindo polícias municipais (forças locais);
- A Polícia Judiciária de Portugal (PJ), principal órgão de investigação (idealizada em 1945 aos moldes do FBI), possui estrutura de carreira única, onde os policiais ingressam no órgão como inspetores;
- A progressão na carreira da PJ ocorre por capacidade técnica e antiguidade (critérios cumulativos), via concorrência interna, havendo concurso externo apenas para o cargo de inspetor.
- Não há nas polícias de Portugal cargos com natureza jurídica(inclusive na PJ);
- Não existe em Portugal a figura do Delegado de Polícia, sobretudo na qualidade de autoridade policial, cabendo às Instituições Policiais o desempenho do encargo de autoridade de polícia criminal, podendo qualquer agente ser considerado autoridade de polícia criminal quando agindo em razão da função policial;
- Não há a figura do Escrivão de Polícia na estrutura das forças policiais de Portugal, nem mesmo na Polícia Judiciária. Esta função é exclusiva do Poder Judiciário, onde existem as funções deescrivão-auxiliar, escrivão-adjunto e escrivão de direito (Decreto-Lei 343/199, de 26.08.99). Estes profissionais auxiliam os juízes de direito no âmbito do Tribunal de Instrução Criminal (na fase de instrução do inquérito) e os Juízos Singulares (na fase de julgamento do processo);
- Todas as Polícias Nacionais de Portugal (PJ, PSP, GNR, SEF) possuem ciclo completo de atuação;
- A PSP, cuja função assemelha-se à nossa da Polícia Militar, possui viés civil uniformizado (não-militar), apesar de contar com uma estrutura tradicionalmente hierarquizada. Não possui carreira única, existindo oficiais e agentes com formações e atribuições diferentes. Os oficiais possuem nível superior, enquanto que os agentes nível médio. Pode haver sindicalização.
- Os Conselhos Superiores de Polícia da PJ e da PSP contam com membros (vogais) de todos os cargos, indicados pelas entidades sindicais;
- Considerando o PIB dos 02 países (US$ 219 bilhões x US$ 2.190 trilhões), o efetivo de Inspetores da PJ portuguesa em atividade é 100% maior do que o de policiais federais do Brasil (contando todos os cargos). Se usarmos o número de habitantes, o efetivo de investigadores da PJ em Portugal é 350% superior aos quadros da PF brasileira;
- Os serviços de polícia aeroportuária, controle migratório e expedição de passaportes, são realizados por uma força policial específica (SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) que atua na prevenção e investigação dos crimes havidos em áreas de fronteiras, portos e aeroportos;
- Nas forças policiais de Portugal, os candidatos admitidos vinculam-se a permanecer na instituição por no mínimo de 05 anos após a conclusão da formação ou do estágio ou, em caso de abandono ou desistência injustificada, a indenizar os custos de formação.
De tudo, pode-se constatar que o sistema policial português, apesar de ainda pendente de adequações segundo os modelos policiais mais modernos (EUA, Inglaterra, Alemanha e Japão — totalmente civis e com grande liberdade de ação), apresenta-se mais aprimorado que o sistema policial brasileiro, notadamente por possuir a totalidade de suas organizações de segurança pública atuando em ciclo completo de polícia, bem como por contar com instituições como a Polícia Judiciária (PJ, operando aos moldes do FBI) e o Serviço de Estrangeiros Fronteiras (SEF, operando aos moldes do U.S. Customs) estruturadas em carreira única e com importante liberdade operacional.
Certo é que, abrindo o leque de possibilidades que o direito comparado nos disponibiliza, o sistema de segurança pública brasileiro está visivelmente em descompasso com a realidade mundial, especialmente quando se trata do respeito aos direitos humanos, aos direitos trabalhistas dos policiais e ao prestígio de doutrinas que valorizem a ética profissional, a meritocracia, a eficiência e o respeito ao primado da democracia no seio das forças policiais.
Ubiratan Antunes Sanderson é escrivão da Polícia Federal em Porto Alegre, bacharel em Direito e pós graduado em Gestão de Segurança Pública ULBRA/RS. Presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2016.
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