O termo “cultura do estupro” surgiria entre os anos de 1960 e 1970, época de grandes mobilizações feministas nos EUA, Europa e, apesar do regime de Ditatura Militar instaurado no Brasil, aqui também tivemos diversas manifestações em favor da mulher. O lançamento do livro da feminista americana, Susan Browmiller, Against our Will ("Contra nossa Vontade", sem tradução para o português), foi um marco na defesa dos direitos das mulheres. A feminista defendia a ideia de que o estupro não era algo ligado ao desejo sexual, mas ao poder e dominação. Antes disso, as mulheres estupradas eram consideradas culpadas e os homens, doentes. Elas precisariam provar que tentaram resistir ao estuprador e, dependendo da forma como se vestiam, podiam ser consideradas culpadas, sua vida sexual pregressa também contava como fator atenuante, ou ainda o fato de terem vários parceiros poderia querer dizer que consentiam o ato. Havia ainda observações sexistas em livros jurídicos que diziam que a mulher “tem tendência a mentir” e, por isso, não era levada a sério a denúncia.
Isso há 40 anos.
Hoje, ainda vivemos a mesma cultura do estupro, as mulheres ainda são julgadas pelas roupas que vestem, pelo comportamento que adotam, pelos lugares que frequentam, pelo que bebem e até pela maneira que andam, tudo pode ser considerado ‘motivo’ para serem estupradas. A sociedade entoa em alto e bom som aos quatro cantos: “Se estivesse em casa, não aconteceria isso! ”, “Se tivesse ido à Igreja, não aconteceria isso! ”, “Se não usasse roupa curta...”, “Se não bebesse...”, “Se...”, são muitos “Se’s”. A sociedade brasileira é patriarcal por atavismo, existe uma ideologia de papéis de gênero arraigada de tal forma, que anos de debates feministas ainda não conseguiram desvanece-la. As pessoas compactuam com essa cultura, às vezes, sem perceber, é a mídia, as novelas, publicidade, revistas, os padrões impostos nas entrelinhas, as personagens estereotipadas, uma tentativa de modelar comportamentos e adequar aos respectivos papéis de gênero. Onde o indivíduo precisa se adequar ao seu papel de homem ou mulher para que incidentes não acontecem. A banalização da mulher, vista como objeto de desejo, um mero pedaço de carne suculenta que tem como objetivo satisfazer ao homem.
O estupro só passou a ser crime contra a dignidade e liberdade sexual a partir de 2009, até então era considerado crime de ação privada contra os costumes. Sim, contra os costumes. Nesse caso, leia-se: crime contra os costumes machistas, pois era crime apenas no caso de um homem atentar contra uma mulher, e só era um crime pois feria os direitos de marido ou de pai do homem em questão. O fato de a mulher ter sido violentada só importava porque seria vergonhoso para o pai ou marido, não por ela ter sofrido. A lei mudou, mas a mentalidade geral, não.
Até quando?
Quantas de nós já não sentiram nojo por ouvirem cantadas maldosas na rua, por terem sido bolinadas em transporte público, ou nunca temeram serem simpáticas demais com um colega e serem mal interpretadas ou trocarem de roupa por acharem que aquela ficara muito curta ou justa ou decotada e tem medo do que pode acontecer? As mulheres lutam pelos seus direitos desde sempre, lutaram pelo voto, lutaram para trabalhar sem permissão de marido, pelo direito ao divórcio, direito a assumirem cargos públicos, a usarem minissaia, direito a estudarem, a criarem seus filhos sozinhas, a pensarem, a saírem sozinhas, a dirigirem, a terem sua própria conta em banco. E hoje, em pleno século XXI, ainda precisam lutar pela equiparação salarial, pelo direito a orientação sexual que quiserem, por poderem andar sozinhas nas ruas, para não serem estupradas, para abortarem caso sejam, para usarem tatuagens, piercings, por não precisarem ter filhos se não quiserem, por não quererem casar, por não serem obrigadas a se adequar para estarem inseridas. Não deveriam precisar. São tão seres humanos quanto os homens.
A cultura do estupro só é possível onde há machismo, sexismo, onde as desigualdades entre os gêneros são tão grandes e patriarcais, que a desumanização da mulher se torne algo normal. A mulher não merece ser estuprada, ela não é um objeto, ela não pertence ao homem, ou à Igreja, ou à família, ou a ninguém. Ela é um ser humano e não veio ao mundo para satisfazer aos caprichos de homens que precisam dominar para se sentirem homens. Sem generalizações, é claro!
VANESSA LEMOS
Cronista. Curiosa. Incansável leitora. Provável pensadora. Possível escritora..
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