sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Brasil deve pensar no agendamento da execução da pena


Penitenciária e hotel têm alguma semelhança? Exceto por serem formas de alojamento, parecem-se tanto quanto o paraíso e o inferno da visão bíblica, endereços respectivos das almas pias ou (a)penadas, segundo a sentença divina.
Cadeia não é resort e sentenciado não é turista, mas nos anos 1970, o estudioso da execução penal Augusto Thompson publicou um livro – A Questão Penitenciária – no qual sugere a proporcionalidade entre vagas na prisão e condenados para cumprimento de penas privativas de liberdade. Isso implica, inclusive, que o Estado promova o agendamento para o futuro recluso ser recolhido à penitenciária.
Aquele autor parte de um raciocínio simples: enquanto na hotelaria, a hospedagem fica condicionada à existência de leitos, a ordem judicial de execução da pena não pode ser postergada, pouco importando se as celas estão abarrotadas. O sistema penitenciário que se vire.
O sistema penitenciário não se virou suficientemente. Daí, o cenário das prisões brasileiras corresponder ao inferno em vida: celas abarrotadas de homens e mulheres (em alguns casos, inclusive no mesmo lugar), sujeira e mau cheiro de nausear os porcos, promiscuidade, insuficiência de trabalho para os encarcerados e alimentação indigesta.
Decorridos cerca de 40 anos dos escritos de Thompson, o tema não se desgastou. No confinamento carcerário, superpopulação foi e será rima rica para corrupção e rebelião. Para falta de organização, também.
Os números divulgados pela imprensa mostram que o Brasil tem uma comunidade carcerária que cresce a cada ano. Segundo relato do Ministério da Justiça, no primeiro semestre de 2012 foram encarceradas 34.995 pessoas – entre presos condenados definitivamente e os que ainda respondem a processo – e criadas apenas 2.577 vagas. No mesmo período do ano anterior, registraram-se 17.551 prisões.
Mas há mão inversa. Todo o santo dia, muitos sentenciados deixam as prisões, em regra por três motivos: concessão de habeas corpus, cumprimento da pena ou passagem para um sistema prisional mais flexível.
Ocorre que essa contabilidade não opera um planejamento consistente, a considerar o crédito (número de vagas) e o débito (presos recolhidos). Em parte, pela impossibilidade de planejar o número de condenados que deverão ser recolhidos à prisão, a cada dia.
Reitere-se: não se trata de recolhimento à cadeia por conta da prisão de caráter processual, sendo a preventiva o exemplo mais comum. Cuida-se, aqui, de sentenciados em caráter definitivo. Notadamente aqueles não reincidentes e que cumprirão a sentença em regime mais brando, cujas penas vão até oito anos, para os quais se presume menor periculosidade.
A lei brasileira não permite o agendamento do início da execução da pena. Utopia de quem não tem o que dizer? A experiência bem-sucedida em outros países diz que não. Faz alguns anos, a imprensa noticiou a condenação nos Estados Unidos de um casal de nossos patrícios por entrada de divisas irregular naquele país. Eles tiveram datas distintas para o início do cumprimento da pena, de modo que cada um pudesse administrar a família enquanto o outro estivesse na prisão.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal pacificou esta compreensão: o recolhimento do sentenciado para cumprir a pena fica reservado ao momento em que restarem esgotados os recursos (em juridiquês, trânsito em julgado da sentença condenatória) ou, pelo menos, com o reconhecimento judicial de que o recurso da defesa é apenas protelatório.
Se é legítimo que se aguarde esse instante, parece compatível a sugestão de Augusto Thompson. Por que não estabelecer uma regra de proporcionalidade que permita agendar o início da execução da pena privativa de liberdade em condições que ratifique o respeito à dignidade humana?
Eis uma discussão desejável, sem descuido do exame paralelo de regras para impedir a chamada prescrição do cumprimento da pena até que o recolhimento à prisão aconteça. Cabe lembrar a importante reforma promovida pela Lei 12.403/2011, que autoriza medidas cautelares para desestimular a fuga ou evitar embaraço do processo pelo acusado.
O assunto, tão novo, tão velho, não pode calar. A Lei de Execução Penal está na antessala da reforma no Congresso. Para tanto, foi composta pelo Senado uma comissão de juristas, com a participação do ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça, de larga experiência.
Há um sentimento de que a sociedade brasileira encontrou nos diversos órgãos fiscalizadores e no Judiciário destinatários certos para vigiar os recursos públicos. Resta saber como punir. Enquanto isso, o CEP do inferno é o de qualquer endereço no qual se localize uma penitenciária.

Og Fernandes é ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2013

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