O Brasil perdeu para os Estados Unidos em números de usuários de cocaína em pó e crack no ano de 2011. Foram 2,8 milhões de consumidores no país, contra 4,1 milhões dos EUA. Esses números são o resultado da recente pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas e Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que foi divulgada na página do Inpad na internet dia 5 de setembro de 2012.
Apesar de intoleráveis, os dados apresentados não surpreenderam os profissionais que trabalham na área de Restauração de Pessoas Dependentes em Substâncias Psicoativas, pela ausência de novidades. Para esses operadores nunca houve nenhuma dúvida da existência no Brasil de uma rede bem estruturada para atender a demanda que ao longo dos anos vem crescendo assustadoramente e que segundo a referida pesquisa atingiu hoje mais de 3 milhões de usuários de cocaína e crack.
Para essa pesquisa foram ouvidas 4.607 pessoas com mais de 14 anos em 149 cidades. Trabalho há mais de três décadas na área de restauração de pessoas dependentes e pude constatar que a partir do ano 2000 surgiu o envolvimento da criança ou adolescente na faixa etária de 12 anos chegando até 7 e 6 anos de idade. Elas nem sempre são contadas, mas têm sido vitimadas. Por essa razão acreditamos que se levarmos em consideração o usuário infantil os números poderão ser ainda maiores no que se refere ao consumo de crack por crianças de baixa renda.
Quanto ao acesso às drogas, a existência da distribuição feita através de uma rede estruturada em todo território nacional fez deste fato um facilitador que foi consolidado (no estado de São Paulo e posteriormente seguido por outros estados), com a implosão do Carandiru e a inconsequente transferência dos presos sem nenhum planejamento para as cidades do interior. Fato que não resolveu a violência na capital e esparramaram as drogas comprometendo o interiorano, em especial, o infanto-juvenil, que até aquele momento era uma criatura mais ingênua, presença desguarnecida, ao contrario dos adolescentes e jovens paulistanos que por várias razões, inclusive de sobrevivência, precocemente se tornam pessoas mais sagazes.
Quando um especialista em substâncias psicoativas escuta falar em drogas, seja heroína (pouco usada no Brasil), cocaína, crack, merla, oxi ou até mesmo drogas sintéticas, se ele é mesmo um especialista o mínimo que ele tem que saber é se a droga já entrou no país quando e qual foi a porta de entrada. Vejamos a questão do crack, que no último pleito eleitoral ocupou os palanques como se fora um recém-chegado; ele já está entre nós há mais que 20 anos e continua dizimando crianças e adolescentes de baixa renda.
Os mais sensíveis que me desculpem, mas estou convicta de que no Brasil a tragédia tem que vitimar primeiro os ricos para que providências sejam tomadas e delas aproveitem as pessoas de baixa renda. Isso é inaceitável, mas é o que acontece e está acontecendo agora com o crack, que lamentavelmente como qualquer outra droga não tem preconceito e se estabeleceu também nas classes mais abastadas da população.
Quanto à questão do dependente de cocaína, e em especial do crack, dizer que não quer ajuda é a mais pura verdade. O crack provoca um tipo de dependência perversa, em minha opinião uma das mais severas. Costumo dizer que com o crack tudo anda velozmente, menos sua restauração.
Esse tipo de dependente tem uma subserviência absurda à droga. Pessoas inteligentes, competentes, educadas, higiênicas, num tempo recorde se tornam pessoas repulsivas cujo único objetivo é fumar, fumar, até exaurir suas energias.
Quanto à recidiva, a popular e temível recaída: em minha opinião ela faz parte do processo de restauração, principalmente no caso de usuários de crack. Mas a melhor notícia é que há uma saída para as drogas.
Costumo dizer que a restauração de vidas de pessoas dependentes de substâncias psicoativas é difícil, dispendiosa, doída e demorada. Não há como restaurar alguém com prazo fatal.
Falando serio: esse assunto drogas já deveria ter entrado em pauta nacional com prioridade máxima. Também não é mais um assunto engessado e da competência de uma única disciplina, como outrora sujeita apenas ao âmbito do Direito. Também não é uma questão onde a ciência possa dar a última palavra, por uma razão muito simples; até hoje não há chá, comprimido, xarope, injeção, supositório, choque, acupuntura, cirurgia, procedimentos psicoemocionais que por si sós tenham trazido algum resultado com êxito.
Entretanto o Brasil tem know how sobre esse assunto. As comunidades terapêuticas pouco citadas são as pioneiras no atendimento ao dependente químico desde 1967. No Brasil, mais precisamente, na cidade de Goiânia teve inicio o primeiro trabalho com esse segmento e com êxito. As comunidades terapêuticas conciliam com sabedoria ciência e espiritualidade, a espiritualidade compreendida como o Poder de Deus utilizado como instrumento para libertação das pessoas.
O que está faltando em minha opinião é humildade para que possamos sentar juntos e trocar ideias a respeito de tudo que possa ser somado a favor da vida dessas pessoas.
O terceiro setor vem perseverando nessa luta e se não fosse o atendimento no anonimato desses pioneiros estaríamos numa situação muito pior. Estamos na era da mediação, do diálogo e precisamos esquecer um pouco o status e fixar nossos esforços em devolver a saúde e evitar a morte dessas pessoas. Não há maior láurea que acompanhar a restauração de um ser humano, principalmente se esse ser humano for uma criança ou um adolescente.
Conceição Cinti é advogada e especialista em tratamento de dependentes.
Revista Consultor Jurídico, 10 de setembro de 2012
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