segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Artigo: “Novo” Código de Processo Penal? Processo legislativo e de como as coisas não são mais tão “novas” assim

1. Novos anteprojeto e exposição de motivos, mas...
A história é farta em mostrar que não adianta pensar em mudança se permanecem os mesmos hábitos e crenças e que, quando não se muda a mentalidade dos responsáveis pela concretização das promessas de novos paradigmas, elas não vingam. Promessas de mudanças, tais quais cogitações de crime (ainda) não valem nada. E são conhecidas a metáfora da roupa apertada que insiste em se usar como se coubesse no corpo e a da roupa gasta como alguns dos bordões ainda usados em processo penal, apesar dos ventos do Estado Democrático de Direito ancorado na dignidade da pessoa humana.
O que se vê do processo legislativo em andamento no Senado da República a instituir novo Código de Processo Penal é exemplo de que, às vezes, o conservadorismo sincero se dá com o retrocesso no próprio texto, ao contrário das promessas da exposição de motivos, e de que o saudosismo, até mesmo de institutos ditatoriais e antilibertários, se estampa em algumas emendas parlamentares que sucederam o texto originário da Comissão de Juristas instituída pelo requerimento n. 227, de 2008, que se desincumbiu da árdua tarefa de redigir o que acabou sendo o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal.(1)
Há risco de, no processo legislativo em curso, esquecer-se dos propósitos da exposição de motivos, dos princípios fundamentais da persecução penal (Livro I, Título I) e de se apagarem os avanços dogmáticos que a ciência processual penal já constatou serem inequívocos e fundamentais em um Estado Democrático de Direito.
Isso se percebe em, pelo menos, três emendas propostas ao texto do anteprojeto quando comparado ao que se gesta no Senado, decorrente do Parecer nº 334 de 2010-CCJ, do relator Senador Renato Casagrande, que ofereceu a emenda nº 2-CCJ (substitutivo), aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ – do Senado, em 12.04.2010, aqui resumidamente tratadas.(2)
As tais emendas, sem prejuízo de outras que foram objeto de considerações do IDDD, do IBCCrim, da AJD, da OAB e de outras entidades ouvidas em audiências públicas pelo Senado Federal, afastam-se da premissa de que a garantia da segurança pública só se consegue num Estado de liberdades e, particularmente, geram descrença na imagem e semelhança que possa vir a ter o novo Código, desfigurado quando se coteja o substitutivo com o anteprojeto. E, particularmente, o substitutivo com o Estado de Direito brasileiro.
Têm os senadores a difícil e complexa missão de analisar criticamente os pontos lançados pelos integrantes da Comissão de Juristas. Da legitimidade indiscutível da atividade parlamentar, apontam-se limites de mutação em pontos fundamentais do anteprojeto, que comprometem sua razão de ser, notadamente em pontos afetos aos direitos fundamentais. Há riscos anunciados.
2. Desvios em matéria de medidas cautelares
Por se tratar de questões ligadas de perto às liberdades públicas, escolheu-se o campo das medidas cautelares para se comprovar o sério desvio de rota antigarantista no curso do processo legislativo a partir da matriz da Comissão de Juristas. Os pontos são os seguintes.
2.1. Inconstitucional tendência à antecipação de tutela em processo penal
Enquanto a Comissão de Juristas previu, no artigo 583, a suspensão do exercício de função pública ou atividade econômica como medida cautelar alternativa à prisão, emenda proposta(3) e acatada no âmbito da CCJ do Senado pelo substitutivo sugere que, além disso, à sua decretação se some a perda da remuneração do funcionário investigado (art. 593, §1º, substitutivo).
A redação aprovada pela CCJ peca, primeiro, por falha sistemática, pois a vedação de antecipação da tutela em desfavor do investigado (o que se vê, p. ex., para casos de prisão preventiva: art. 544, anteprojeto; art. 554, substitutivo) há de valer não só para casos em que a cautelar incide sobre sua liberdade, como, também, sobre sua atividade profissional. Ainda sob o ponto de vista sistemático, se a noção mesma de medida cautelar se liga ao escopo de assegurar a efetividade do processo, não seria de se admitir a vislumbrada confusãoentre a cautelaridade no campo do direito processual penal com eventual antecipação de tutela, figura já existente no campo do direito processual civil.
O processo penal, aliás, não deve conhecer figuras antecipatórias da tutela penal se, lógica e juridicamente, vierem em desfavor do imputado, haja vista a presunção – a ser levada a sério – que milita em seu favor.(4)
Aliás, o Código Penal vigente (art. 92, I) já contempla a perda da função pública como efeito de decisão condenatória, o que torna mais evidente a confusão que se irá incorrer caso, a título de se tratar de medida cautelar, tentar-se impor, no processo penal, tal medida antecipatória de tutela.
2.2. Ampliação de permissivo para a prisão preventiva
Imaginavam os juristas que redigiram o anteprojeto do novo Código de Processo Penal que só seria possível decretar-se prisão preventiva nos crimes dolosos cuja pena máxima fosse superior a 4 anos (art. 545, II). No âmbito da discussão levada a efeito na CCJ do Senado, contudo, ponderou-se que se deveria prever a hipótese dessa medida cautelar também a crimes apenados com detenção se cometidos com "violência ou grave ameaça ou nos casos de reincidência".(5)
Qual foi a solução aclamada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado? A de, e como se lê no substitutivo, para se superar o nomeado "critério bastante aleatório" da separação do permissivo da prisão em razão do regime de pena (detenção ou reclusão), "reduzir de 4 para 3 anos a limitação prevista no referido dispositivo".
Tão ou mais criticável que a mudança patrocinada é o silêncio que reina sobre as explicações de quais foram os critérios (menos aleatórios?) para se chegar à redução de "4" anos para "3" como limite mínimo de admissibilidade de prisão preventiva. É desolador ler que não há justificativa – se existisse, poder-se-ia discutir sua plausibilidade – para a redução da proteção da liberdade dos cidadãos.
2.3. Gravidade do fato, prática reiterada de crimes e clamor público como requisitos da preventiva
A se levar a sério o arcabouço teórico atingido pelo Direito Processual Penal brasileiro e o propósito dos integrantes da Comissão de Juristas que redigiu o anteprojeto do Código de Processo Penal (Na exposição de motivos se disse que "o absurdo crescimento do número de presos provisórios surge como consequência de um desmedido apelo à prisão provisória, sobretudo nos últimos quinze anos. Não se tem notícia ou comprovação de eventuais benefícios que o excessivo apego ao cárcere tenha trazido à sociedade brasileira" – item III, seção VII), as previsões do artigo 544 do anteprojeto bastariam.
Mas os senadores não viram dessa forma, ainda porque, motivados por pleito baseado em caso particular,(6) contrariaram o que escreveram os membros da Comissão de Juristas para estabelecer, no art. 554 do substitutivo, que cabe prisão preventiva "em face da extrema gravidade do delito" (inc. IV) e "diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor" (inc. V). No parágrafo segundo daquele artigo, onde antes se dizia que a "gravidade do fato não justifica, por si só, a decretação da prisão preventiva", agora se lê que tal cláusula ("por si só" é um permissivo à deriva e à procura de algo em que se agarrar) é dirigida ao "clamor público".
Tempos difíceis esses em que, com argumentos ad terrorem, baseados em casos isolados e extremos, corre-se o risco de ver jurisprudência garantista do Supremo sepultada e doutrinas sedimentadas jogadas ao léu. É uma triste ironia constatar tudo isso em 2010, na maturidade da Constituição e no auge do desenvolvimento do processo penal brasileiro.
3. Ponto de partida e de chegada: Estado de Direito e sua imagem e semelhança

Haveria mais a dizer, como foi dito por quem participou de audiências públicas no Senado e tantos que escreveram sobre o anteprojeto e o substitutivo.(7) Aqui apenas se quis – até porque o processo legislativo aguarda contribuição da Corte Constitucional(8) – chamar a atenção para que alguns pontos não passem em branco.
Que venha o novo Código de Processo Penal. Que seja novo no conteúdo e não só na forma; e que não desfigure os propósitos da Comissão de Juristas nem contrarie os princípios gerais inaugurados nos arts. 1º ao 7º no que há, ali, de normas garantidoras de direitos e liberdades.
Mudanças de rumo, no curso do processo legislativo, se vierem para tornar o modelo de processo penal mais apegado às normas constitucionais e de tratados internacionais protetoras de direitos fundamentais, que venham. Mas, se for para trazerem a sensação de volta ao obscurantismo de nosso passado recente, que fiquem como o passado também está: enterrado, morto e sepultado.
O Estado Democrático de Direito, já se disse, merece diploma que seja sua imagem e semelhança, e não sua antítese, gestada a conta gotas no curso do processo legislativo.


Notas
(1) Há, no próprio texto haurido das discussões da Comissão, questionamentos como o da limitação das hipóteses de cabimento de habeas corpus, o da possibilidade de condução coercitiva de réus para fins de reconhecimento, o aplauso às "diligências informais" da polícia judiciária, a previsão de patteggiamento no processo penal brasileiro, a dubiedade da garantia do direito ao silêncio aos cidadãos presos em flagrante, a timidez com que se previu a investigação defensiva e outras. Todos esses pontos extravasam o propósito deste texto, que é o de desnudar desvios antigarantistas de rota do anteprojeto nos desvãos do processo legislativo. A íntegra do anteprojeto pode ser visualizada no seguinte link: http://www.senado.gov.br/novocpp/pdf/anteprojeto.pdf.
(2) O texto do substitutivo pode ser consultado em:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=75903
.
(3) O inteiro teor da emenda pode ser visto em:
http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/73451.pdf
.
(4) Não se descerá, aqui, ao campo teórico da incidência normativa da presunção de inocência, se princípio ou regra, posto que norma de direito fundamental. Essa tarefa, de vanguarda em seara processual penal, foi desenvolvida por Maurício Zanoide de Moraes em seu excelente Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010.
(5) Pensou o parlamentar que propôs a emenda que o texto dos juristas não atenderia à política criminal brasileira porque "é sabido que em muitos casos, mesmo nos crimes em que a pena máxima não ultrapassa quatro anos, é necessária a prisão do acusado, não raro, por conveniência da instrução criminal" (literalidade da emenda em:
http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/73456.pdf
).
(6) O teor da emenda sugerida prova que ela decorreu de concessão de liminar em habeas corpus (e não de concessão da ordem como erradamente constou na proposta de emenda parlamentar) pelo STF em caso de conhecido médico geneticista paulistano que respondia preso a processo ainda não concluído em 1º grau. Do caso concreto assim se passou à postulação da aprovação da emenda: "Não é possível que alguém que tenha praticado reiteradamente tantos crimes graves tenha o direito de responder ao clamoroso processo em liberdade" (para consulta à emenda:http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/73458.pdf).
(7) Conhece-se e aplaude-se o teor das propostas de emendas propostas pelo IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual – e entende-se que, caso sejam acatadas pelos membros do Congresso Nacional, poderão recolocar as coisas em melhores termos.

Renato Stanziola Vieira

Advogado em São Paulo. Mestre em direito constitucional (PUC-SP). Mestrando em direito processual penal (USP). Membro do IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

VIEIRA, Renato Stanziola. “Novo” código de processo penal? Processo legislativo e de como as coisas não são mais tão “novas” assim. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 04-05, ago., 2010.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog