terça-feira, 17 de agosto de 2010

Artigo: Possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos – inconstitucionalidade do art. 44 da Lei de Drogas

A previsão do art. 44 da Lei de Drogas, que proíbe a conversão da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, fulmina a garantia fundamental da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF). O legislador, no momento da definição das penas que serão aplicadas em abstrato para cada crime, deve “abster-se dos excessos criminalizantes e arroubos de paixão pessoal ou popular”,(1) pois apenas assim o princípio da individualização da pena firmar-se-á “entre os princípios que alicerçam o Estado Democrático de Direito”.(2)
A Constituição Federal foi taxativa no tratamento mais rigoroso de certos crimes, como a tortura e o tráfico de drogas, vedando apenas a concessão de fiança, graça e anistia (art. 5º, XLIII). Nada há na Carta da República que proíba a conversão da pena privativa de liberdade pela restrição de direitos para condenados por tais crimes, o mesmo valendo para a concessão de liberdade provisória ou progressão de regime.
O inciso XLIII do art. 5º é uma norma constitucional de eficácia contida, tendo “aplicabilidade imediata, irrestrita, comparando-se, nesse ponto, às normas de eficácia plena”.(3) Porém, necessita de “intervenção do legislador ordinário, fazendo expressa remissão a uma legislação futura; mas o apelo ao legislador ordinário visa a restringir-lhes a plenitude da eficácia[e não ampliar o seu âmbito de incidência], regulamentando os direitos subjetivos que delas decorrem [...]”.(4)
José Afonso da Silva prossegue ensinando, ainda, que “enquanto o legislador ordinário não expedir a normação restritiva, sua eficácia será plena (...). São de aplicabilidade direta e imediata, visto que o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitam”.(5) O conteúdo constitucional se aplica por si só, ainda que não editada lei para tratar da matéria, pois “a referência à lei é desprezível”, sendo que “a matéria assim tratada já se apresenta com densidade jurídica bastante para justificar sua auto-aplicabilidade”.(6)
Assim, se a Constituição Federal não proíbe tal conversão, não pode a lei ordinária, a título de lhe dar aplicabilidade concreta, proibi-la, o que configura manifesta afronta ao dispositivo constitucional. O espaço que a Constituição, no inciso XLIII do art. 5º, confere à lei ordinária está delimitado ao dispor aquela que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos...”. Ora, a Constituição diz que para tais crimes não se pode conceder os citados benefícios – e tão somente esses.
Foi por razão similar, aliás, que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime nos crimes hediondos.(7) No julgamento daquele writ, seis Ministros – Marco Aurélio, Carlos Britto, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Eros Grau e Sepúlveda Pertence – votaram a favor da inconstitucionalidade, por entenderem que tal preceito viola os princípios constitucionais da individualização da pena, da dignidade humana e da proibição de imposição de penas cruéis. Os Ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim, por sua vez, entenderam pelo cabimento da vedação da progressão de regime.
Não é demais ressaltar que para o crime de tortura não há vedação à substituição da pena. Muito ao contrário. A Lei nº 9.455/97 segue à risca o que dispõe a Constituição Federal, conforme se depreende da redação do § 6º de seu art. 1º: “O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”.
Em suma, não pode uma norma infraconstitucional se sobrepor à Lei Maior, impedindo que o condenado, que preenche os requisitos exigidos para a substituição da pena, faça jus a esse benefício. A sanção deve ser devidamente individualizada, sendo que, se o apenado tem direito ao benefício, conforme o art. 44 do Código Penal, este deve ser a ele facultado.
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em 4 de novembro de 2009, declarou constitucional, por maioria de votos, a impossibilidade de conversão da pena para o crime de tráfico (cf. AI no HC 120.353, rel. p/ acórdão Ari Pargendler).
Entretanto, tanto a 1ª como a 2ª Turmas do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos seguintes julgamentos, respectivamente, HC 90.871, rel. Cármen Lúcia, j. 03.04.2007, DJe 24.05.2007 e HC 97.500, rel. Eros Grau, j. 25.05.2010, DJe 24.06.2010, já entenderam pela inconstitucionalidade da matéria. Importante registrar que ambas as decisões foram proferidas à unanimidade, estando ausentes, no entanto, os Ministros Ellen Gracie e Joaquim Barbosa.
Vale relembrar que o Plenário da Suprema Corte brasileira já permitiu a substituição da pena no crime de tráfico, conforme se observa do julgamento do HC 85.894, rel. Gilmar Mendes, j. 19.04.2007, DJe 27.09.2007. Naquela oportunidade, não houve discussão quanto à inconstitucionalidade do dispositivo e restaram vencidos os Ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Celso de Mello.
Esta matéria está novamente afeta ao Pleno do Supremo Tribunal Federal (HC 97.256) e já conta com o voto do Ministro Relator Carlos Brito pela inconstitucionalidade da vedação prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006. Resta-nos, então, aguardar esperançosamente o término do julgamento do writ, que atualmente encontra-se com pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa.

Notas
(1) Paulo S. Xavier de Souza, Individualização da pena no Estado Democrático de Direito, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 2006, p. 32.
(2) Idem, ibidem.
(3) André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, São Paulo, 2002, p. 83.
(4) José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 6ª ed., Malheiros, São Paulo, 2003, p. 104.
(5) Idem, ibidem.
(6) Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, São Paulo, vol. 2, p. 225.
(7) STF, TP, HC 82.959, rel. Marco Aurélio, j. 23.02.2006, DJ 01.09.2006.

Cecilia Tripodi
Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela FGV-SP. Membro do IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Advogada criminalista em São Paulo.

- Como citar este artigo:
TRIPODI, Cecília. Possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos – inconstitucionalidade do art. 44 da Lei de Drogas. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 10-11, ago., 2010.

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