A Lei nº 9.455/1997 trouxe ao ordenamento jurídico pátrio a previsão do crime de tortura, em razão, como é de praxe do legislador brasileiro que só atua diante de casos pontuais, de abusos praticados por policias militares na Favela Naval de Diadema-SP.
Dentre os debates que cercaram o advento da legislação sobre tortura, interessante destacar a definição do sujeito ativo do delito, para se saber se trataria de crime comum,(1) que poderia ser praticado por qualquer pessoa, ou, crime próprio,(2) que poderia ser praticado apenas por agentes públicos.
Tal discussão ocorreu porque a lei permitiu aos particulares figurarem como sujeitos ativos do crime de tortura, em situações tais como, na tentativa de obter da vítima alguma informação relevante ou reconhecimento de dívida ou, ainda, por aqueles que detêm a guarda de menores ou incapazes, como forma de coação, atemorização ou punição, prevalecendo na jurisprudência pátria o entendimento que se trataria de crime comum.
Porém, não obstante o posicionamento explicitado acima, somente funcionários públicos ou particulares no exercício de atividades ligadas aos fins do Estado, podem ser sujeitos ativos do crime em exame, tendo em vista a motivação originária (instrumento ilegal utilizado pelo Estado) do crime de tortura. Como assevera Mário Coimbra, ao comentar o intuito do agente que pratica o crime em tela, “a tortura sempre se constituiu num aparato utilizado pelo poder estatal, para obter confissão ou informação relevante de algum indivíduo suspeito da prática de algum delito ou que se suponha que saiba quem foi o autor do crime investigado”.(3)
A advertência de que a lei de tortura brasileira destoa das demais legislações estrangeiras e dos tratados de direitos humanos já foi feita há muito tempo por grande parte da doutrina autorizada. No entanto, após os julgamentos do RE 466.343/SP e do HC 87.585/TO pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se dar nova interpretação a questão do sujeito ativo do crime tortura, visto que a Corte Suprema, com base nos dispositivos inseridos pela EC 45/2004, entendeu como normas supralegais (prevalecendo a posição do Ministro Gilmar Mendes) os tratados que versassem sobre direitos humanos, devendo-se reavaliar a posição atualmente preponderante a respeito do tema à luz dos tratados internacionais sobre tortura dos quais o Brasil é signatário, seja pela via da supralegalidade, seja pela via do status constitucional dos tratados de direitos humanos (posição adotada pelo Ministro Celso de Mello).
Muito embora a posição da Suprema Corte configure um grande avanço no tema, ao concluir que os tratados de direitos humanos são normas supralegais que prevalecem sobre as normas infraconstitucionais, entendemos que há mais no que se evoluir, principalmente para se reconhecer, finalmente, a inconvencionalidade da Lei nº 9.455/1997, no modelo de controle de convencionalidade/constitucionalidade desenvolvido por Valério de Oliveira Mazzuoli.
No caso da tortura, os tratados internacionais que versam sobre normas de Direitos Humanos(4) previram expressamente que aludido delito seria considerado crime próprio,(5) cuja prática estaria restrita aos agentes públicos, o que impediria a tipificação pela legislação infraconstitucional como crime comum, visto que contrariaria tratado de direitos humanos, paradigma de controle das normas de direito interno.
Para Valério de Oliveira Mazzuoli,(6) os tratados que abordam o crime de tortura teriam status de norma constitucional(7) e, consequentemente, caráter material constitucional, independentemente da aprovação exigida pelo art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, que apenas tornaria o tratado examinado materialmente e formalmente constitucional, com equivalênciade emenda constitucional.
No caso da lei de tortura, num primeiro momento, muito embora a legislação esteja de acordo com a Carta Magna, num segundo momento, deve-se passar ao exame da convencionalidade da legislação. Há, certamente, incompatibilidade entre os tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento e o reconhecimento da vigência da lei do crime de tortura, porém, pode-se reconhecê-la como inválida, por meio do controle de convencionalidade, visto que os tratados foram claros ao prever unicamente os agentes públicos como sujeitos ativos do delito de tortura.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais vem adotando o entendimento da tortura como crime próprio,(8) afastando o entendimento de que particulares poderiam praticar referido crime, o que, nos casos concretos, enseja a desclassificação para os delitos de maus tratos, lesão corporal etc.. A referida desclassificação do crime, embora não se faça de forma explícita, se dá por meio de controle difuso de convencionalidade sugerido por Mazzuoli, ante a invalidação da legislação de tortura com a aplicação de outra lei que se adeque ao caso concreto.
Portanto, apesar do tema a respeito do sujeito ativo do crime de tortura ser objeto de imensa discussão – ainda não solucionada –, observa-se que atualmente o arcabouço jurídico constitucional e os tratados oferecem aos operadores do direito saídas para se chegar às soluções em prol dos direitos humanos, sobrevindo o novel controle de convencionalidade das leis como uma das formas mais interessantes para se corrigir (por meio da invalidação da norma) a falha trazida na legislação infraconstitucional que não trata o crime de tortura como próprio, em total dissonância com as definições apresentadas nos tratados de direitos humanos subscritos pelo Brasil.
Referências Bibliográficas
BIERRENBACH, Sheila; LIMA, Walberto Fernandes. Comentários à lei de tortura: aspectos penais e processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
BURIHAN, Eduardo Arantes. A tortura como crime próprio. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008.
COIMBRA, Mário. Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: RT, 2002.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: RT, 2005.
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (coord.). Legislação criminal especial. São Paulo: RT, 2009.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. - São Paulo: RT, 2009. v. 4.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007.
Notas
(1) Nesse sentido: BIERRENBACH, Sheila; LIMA, Walberto Fernandes.Comentários à lei de tortura: aspectos penais e processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (coord.). Legislação criminal especial. São Paulo: RT, 2009; NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007.
(2) Nesse sentido: BURIHAN, Eduardo Arantes. A tortura como crime próprio. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008; COIMBRA, Mário. Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: RT, 2002; FRANCO, Alberto Silva.Crimes hediondos. São Paulo: RT, 2005.
(3) COIMBRA, Mário. Op. cit., p. 167.
(4) Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 28/09/1984 e a Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, ratificadas, respectivamente, em 28/09/1989 e 20/07/1989.
(5) Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes: Parte I, Artigo 1º: “Para os fins da presente Convenção, o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”. Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura: “Serão responsáveis pelo delito de tortura: a) Os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua comissão ou instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam; b) As pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua comissão, instiguem ou induzam a ela, comentam-no diretamente ou nela sejam cúmplices”.
(6) O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, v. 4. São Paulo: RT, 2009.
(7) Voto vencido no HC 87.585/TO, Min. Celso de Mello: “Nesse contexto, e sob essa perspectiva hermenêutica, valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos, mediante atribuição, a tais atos de direito internacional público, de caráter hierarquicamente superior ao da legislação comum, em ordem a outorgar-lhes, sempre que se cuide de tratados de internacionais de direitos humanos, supremacia e precedência em face do nosso ordenamento doméstico, de natureza meramente legal”.
(8) APELAÇÃO – TORTURA – LEI Nº 9.455/97 – CRIME PRÓPRIO – AGENTE PÚBLICO – CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS – DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL SIMPLES E SEQUESTRO. O crime de tortura é crime próprio, somente praticável por agente público. Ao dispor de forma contrária, a Lei nº 9.455/97 não observou a restrição presente em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, decorrendo daí a sua inconstitucionalidade (Apelação Criminal 1.0049.05.009048-6/001(1), Relator: Paulo Cézar Dias, Data do Julgamento: 10/02/2009). No mesmo sentido: Apelação Criminal nº 1.0331.06.002711-6/001(1), Des. Herculano Rodrigues, DJ 25/06/2009; Apelação Criminal nº 1.0702.06.278004-5/001(1), Des. José Antonio Baía Borges, DJ 28/07/2007.
Rafael Junior Soares
Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC/UFPR.
SOARES, Rafael Junior. Inconvencionalidade da Lei n° 9.455/1997: a tortura como crime próprio. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 14-15, ago., 2010.
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