Quando escrevemos o livro Reação Defensiva à Imputação (Revista dos Tribunais, 2002), ressaltamos a relevância do tema da correlação entre o fato imputado e a sentença e, ainda, a importância de ser dado maior destaque ao assunto da classificação do fato, pois, na realidade, o acusado não se defende, como normalmente se afirma, somente do fato descrito, mas também da classificação a ele dada pelo órgão acusatório.
Em virtude de ter sido promulgada nova lei sobre o procedimento do júri, pareceu-nos assim interessante verificar de que forma a mudança do fato ou da classificação foi por ela tratada. Entenda-se, aqui, a expressão mudança do fato de forma ampla, de sorte a abranger casos em que houve descoberta de fatos novos ou de novos agentes.
Quando responder à acusação, o denunciado ou querelado poderá “alegar tudo que interesse a sua defesa” (art. 406, § 3 º), incluindo-se, aí, matéria referente a erro na classificação do fato imputado ao acusado. Como o juiz, na pronúncia, deve “declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena” (art. 413, § 1º), poderá corrigir o equívoco na classificação efetuada pela acusação.
Se, na pronúncia, o juiz discordar da classificação dada ao fato pelo promotor ou querelante, há duas possibilidades. Se, apesar da alteração, o crime resultante da nova classificação continuar sendo da competência do júri, ele “poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito à pena mais grave” (art. 418). O mesmo sucede em outros procedimentos por força da aplicação do art. 383, do CPP. Caso, em virtude da mudança na classificação, o crime deixe de ser da competência do júri, o juiz “remeterá os autos” ao juízo competente para o prosseguimento da causa (art. 419).
Merece realce o tratamento dado pela nova lei à hipótese em que ocorre a demonstração da existência de circunstância elementar não contida na denúncia ou queixa e que configure uma circunstância qualificadora ou uma causa de aumento.
Antes, havia divergência na interpretação do antigo art. 408, § 4º: “O juiz não ficará adstrito à classificação do crime, feita na queixa ou na denúncia, embora fique o réu sujeito à pena mais grave.” Para parcela da doutrina, estaria o juiz autorizado a incluir qualificadoras ou causas de aumento na pronúncia, sem aditamento à denúncia pelo Ministério Público, o que, para outros, era inadmissível, sendo obrigatória a aplicação do art. 384, parágrafo único.
Agora, em que pese ser a redação do novo artigo 418 semelhante à do antigo 408, § 4º, a dúvida ficou dissipada, pois, conforme § 3º, do art. 411, “encerrada a instrução probatória, observar-se-á, se for o caso, o disposto no art. 384 deste Código”, ou seja, se durante a instrução ficar evidenciada a existência de circunstância elementar não contida na denúncia ou queixa, configurando qualificadora ou causa de aumento, deve o juiz, consoante o art. 384, baixar os autos para aditamento do Ministério Público, com nova oportunidade de defesa.
Em caso de haver “indícios de autoria ou de participação de outras pessoas não incluídas na acusação, o juiz, ao pronunciar ou impronunciar o acusado, determinará o retorno dos autos ao Ministério Público, por 15 (quinze) dias, aplicável, no que couber, o art. 80 deste Código”, o qual prevê a separação do processo. Assim, o promotor poderá aditar a denúncia e incluir novos acusados, os quais serão citados, devendo ser realizada nova instrução, ou, oferecer denúncia em separado com instauração de outro processo.
O mesmo dispositivo poderá servir para a hipótese em que surgir elementos idôneos a respeito de novos fatos criminosos, conexos com aquele da denúncia, levando ao seu aditamento, com renovação da instrução, ou ao oferecimento de outra denúncia.
Outra regra que trata de mudança fática é a do artigo 421, § 1º: “Ainda que preclusa a decisão de pronúncia, havendo circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público.” Depois, conforme parágrafo seguinte, “os autos serão conclusos ao juiz para decisão”. A ocorrência normalmente citada para exemplificar a regra é da morte superveniente da vítima, que exige a modificação da acusação por tentativa de homicídio para homicídio consumado. Neste caso, pelo novo dispositivo, o Ministério Público, recebendo os autos, deve aditar a denúncia, e o juiz, após ouvir a defesa, proferir nova decisão de pronúncia.
Quanto à desclassificação no julgamento em plenário, a nova lei trouxe importantíssimas alterações.
No art. 492, § 1º, a primeira parte corresponde, com diferente redação, ao que estava no § 2º, do mesmo dispositivo. Prevê que, se “houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir em seguida a sentença (...)”.
Todavia, a segunda parte do novo § 1º, do art. 492, contempla hipótese antes não suficientemente regulada pela legislação em vigor. Determina a aplicação, “quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração de menor potencial ofensivo, do disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei n º 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
Quando passou a vigorar, entre nós, a Lei n º 9.099, muito se discutiu sobre a possibilidade de, em caso de desclassificação em plenário de Júri, ser efetuada a transação prevista no artigo 76. Prevaleceu o entendimento de que os autos deveriam ser remetidos ao Juizado Especial. Posteriormente, a Lei 11.313/2006, reabriu a discussão, ao prever que, em casos de reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação dos danos e da composição civil. Com isso, sem se discutir, aqui, sobre as afirmações de inconstitucionalidade em virtude da competência exclusiva do Juizado Especial para a aplicação da Lei nº 9.099, admitiu-se que, nos processos de júri, fosse feita a transação. Ora, se ela era possível no início do processo, nada impedia que fosse feita, ao final, em caso de desclassificação. De qualquer forma, permanecia ainda alguma dúvida a respeito. Agora, com o § 1º, do art. 492, quis o legislador que fossem aplicadas as regras dos arts. 69 e seguintes da Lei 9.099. Assim, deve o juiz elaborar sentença com a declaração da desclassificação, aguardar o decurso de prazo para o recurso do Ministério Público, e, depois, designar audiência para os fins previstos nos artigos citados.
Outra relevante regra é a do § 2º, do artigo 492: “Em caso de desclassificação, o crime conexo que não seja doloso contra a vida será julgado pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, aplicando-se, no que couber, o disposto no § 1º deste artigo.” Antes grassava divergência sobre a matéria, havendo os que, a nosso ver sem razão, sustentavam a continuidade da votação dos quesitos pelos jurados, a fim de resolverem sobre os crimes conexos. O entendimento predominante era no sentido do dispositivo enfocado. Ora, se, em virtude da votação dos jurados, o crime passa a ser de competência do juiz singular, não havia razão para continuarem votando delitos conexos que, desde o início, não eram da competência do júri. Diferente, contudo, se os jurados absolvem o acusado pelo crime do júri, quando, então, deverão continuar no julgamento dos crimes conexos, pois, nesse caso, afirmaram a competência do júri para o caso.
Antonio Scarance Fernandes
Professor titular de Processo Penal; procurador de Justiça aposentado e coordenador do ASF Cursos e Eventos
Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008
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