A tese central defendida por Zaffaroni (El enemigo en el derecho penal, Bogotá: Ibañez, 2006, p.19 e ss.) é a seguinte: o Direito penal sempre discriminou pessoas, logo, sempre existiu Direito penal do inimigo, que divide os seres humanos em pessoas e não-pessoas (cidadão e inimigo). Os cidadãos contam com garantias e submetem-se ao poder punitivo interno legítimo (o que observa o devido processo legal). Os inimigos (que são “entes daninhos ou perigosos”) estão sujeitos ao PPBI, ou seja, poder punitivo interno bruto (suspeitos ou réus sem direitos ou garantias), que é típico do Estado de Polícia.
O Direito penal do inimigo é alimentado pela ideologia do inimigo, que é a fonte mais devastadora da concepção humanista da história e da cultura, isto é, das democracias liberais e sociais (republicanas). Todas as idéias de progresso, de dignidade humana, de autonomia do ser humano (frente a Deus e frente ao Poder), de liberdade, igualdade e fraternidade, que giram em torno de uma outra idéia superior que consiste em admitir o homem como centro do mundo (visão antropocêntrica, não teocêntrica nem tecnocêntrica), encontram na ideologia do inimigo o seu desafeto mais destrutivo e dissolvente (cf. Gregório Peces-Barba, em EL PAÍS de 01.07.08, p. 29).
Dessa visão humanista e integradora (ou seja: includente) está se afastando, neste momento, a União Européia, que acaba de aprovar resolução que não só conduz à expulsão dos imigrantes ilegais, senão também que permite a prisão deles por longo período (de seis meses até quatro anos, em alguns países). A Itália, de Berlusconi e seus caudatários e asseclas déspotas, foi o primeiro país a aprovar o crime de “ser imigrante ilegal”. Trata-se, como se vê, de um novo exemplo do nazista Direito penal de autor que pune o sujeito pelo que ele “é”, não pelo que ele “fez”.
Os legisladores, juízes, governantes e agentes públicos mais autoritários são, em geral, os que mais se corroem internamente e dão vazão às suas frustrações punindo duramente nos outros as culpas próprias (é uma espécie de purgação às avessas). Os mais corruptos e violentos tendem a ser (também) os mais algozes contra os outros.
Enquadra-se seguramente nesse perfil o primeiro-ministro Berlusconi que acaba de revelar ao mundo (mais uma vez) a dupla face de todos os que governam ditatorialmente: para os inimigos a lei (dura lex, sed lex); para os amigos ou para o próprio governante o vale-tudo. Berlusconi, que é réu em vários processos, acaba de fazer aprovar uma lei que lhe assegura impunidade em todos eles (em geral, pesa contra o Il Cavaliere a acusação de corrupção, sendo expressivo o caso Mills, no qual ele teria pago 580 mil euros de corrupção).
Por meio do Parlamento (que lhe é favorável) buscou o privilégio de não poder ser processado criminalmente enquanto for primeiro-ministro. Primeiro quis suspender o andamento dos processos criminais iniciados até 30/6/2002 (justamente os dele achavam-se nesse período). Depois conseguiu uma lei (sancionada em 23.07.08) que garante a improcessabilidade dos governantes italianos. Berlusconi, agradecendo os Senadores, disse: “Finalmente os juízes não podem mais me perseguir”. Esse é o Direito penal do “muy amigo”.
Nas democracias formais mandava a vontade das maiorias. Diziam: a maioria aprovou, está aprovado! Essa concepção de democracia está morta. Hoje vale a democracia material, que exige do Parlamento a aprovação de leis coerentes com o Estado de Direito constitucional. Por meio de uma lei Berlusconi está afrontando o Direito e a Justiça. A Itália se converteu (como diz Ferrajoli) no reino da anti-política. A política (que representaria os interesses públicos e gerais) passou a ser subordinada aos interesses econômicos particulares do seu governante. Toda brutal concentração de poder conduz a abusos e arbitrariedades (diz Perfecto Andrés Ibáñez, EL PAÍS de 20/7/08, p. 21).
Na Itália do Senhor Berlusconi são incontáveis as leis ad personam (leis feitas para ele ou para os interesses do seu grupo: lei da importação de capitais exportados, diminuição da pena no delito de balanço falso, diminuição de prazos prescricionais etc.). Esse imputado nobríssimo (Il Cavaliere) goza de todos os benefícios imaginários, com total violação ao princípio da igualdade e a todos os outros princípios republicanos. Uma das suas últimas pretensões atendidas consiste em impossibilitar a interceptação telefônica nos crimes de colarinho branco.
Os italianos, que no final do século XIX e princípio do século XX fizeram a América, ou seja, que invadiram as Américas e se tornaram ricos e afortunados, agora (e isso é o que dizem os adeptos da Lega Nord, que apóia Berlusconi) num recente cartaz estampam a imagem de um índio norte-americano e nele se diz: “Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas. Pense nisso”. Quando os italianos invadiram o mundo evidentemente não foram rechaçados.
Interessava-lhes o discurso do humanismo, da inclusão. Agora a moeda é outra: ideologia do inimigo (expulsão, prisão, segregação, exclusão do imigrante).
A pergunta que não se pode deixar de fazer: a Corte Constitucional italiana vai concordar com todas essas leis ad hoc? Haverá controle de constitucionalidade sobre elas? Já em 2004 esse Tribunal supremo dizia que o Parlamento não tem liberdade de escrever tudo que bem entende, sobretudo quando se trata do poder punitivo do Estado. Não se pode transformar em lei um privilégio odioso.
No tempo do Estado de Direito legal (legalista), não se colocava em discussão a validade da lei desarrazoada, absurda, injusta (aliás, confundia-se vigência com validade). No Estado de Direito constitucional tudo é distinto. Nem toda lei vigente é válida (como nos ensina Ferrajoli). O julgamento de Nuremberg (que condenou vários nazistas) foi o símbolo de ruptura do velho Estado de Direito legalista. Os nazistas cumpriram a lei, mas violaram o Direito. Lei de injustiça extrema não pertence ao Direito (Radbruch, Alexy etc.). Será essa a conclusão da Corte Constitucional italiana em relação a todas as recentes leis ad personam aprovadas sob medida para Berlusconi?
Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri,
mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).
O Estado do Paraná, Direito e Justiça.
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