terça-feira, 8 de julho de 2014

Efeito Perverso

Os gregos tinham razão quando pregavam “nada em excesso”. Todo exagero é prejudicial. Até mesmo virtude, quando levada ao paroxismo, é uma característica do fanático. Por isso Aristóteles formulou a teoria do “meio termo”. A virtude está na mediania.
            A “era dos direitos” que o Brasil vivencia depois da Constituição Cidadã de 1988 é prenhe em exemplos de efeitos perversos decorrentes da prodigalidade com que se distribuem benefícios. O prejuízo é maior no âmbito da mais frágil dentre as entidades da Federação: o município. Aliás, já não se pode a rigor reconhecer a República do Brasil como padrão federativo. Centraliza-se na União o feixe de poderes intensificado pela voracidade tributária conjugada com a avareza na partilha dos recursos financeiros destinados à cidade.
            As pessoas moram na cidade, não no Estado ou na União. A autoridade mais próxima está ao lado e disponível. Não há notícia de Prefeito que possa morar fora do município sobre o qual exerce a sua governança. Pois é o prefeito o desaguadouro das reclamações, pleitos e anseios. Tem de prover a saúde, a educação, o transporte, a moradia, sem prejuízo do saneamento básico e da manutenção de todos os serviços públicos.
            A pletora de exigências está a inviabilizar o governo municipal. Não há orçamento que possa suportar a multiplicação de internações, tratamentos experimentais, medicamentos ainda não aprovados, próteses e outros reclamos no setor saúde. Mas agiganta-se também a requisição de vagas em creches de período integral, em escolas do ensino fundamental e outras, além de material, uniforme, alimentação e outros benefícios.
            O discurso dos direitos fundamentais corre o risco de naufragar, pois a economia nacional é frágil, embora o ufanismo proclame o contrário. A Justiça não tem admitido o argumento da “reserva do possível”, reconhecimento de que diante de demanda infinita e orçamento limitado, nem tudo o que se pleiteia é passível de satisfação.
            A excessiva judicialização da vida brasileira oferece a alguns profissionais um exitoso exercício. Atraídos pela excelência de um determinado sistema, seja na saúde ou na educação, indivíduos sem vinculação com a comunidade encontram quem por eles postule esse direito. Outros até procuram beneficiários para fazê-los merecedores de uma prestação jurisdicional que não se preocupa com o consequencialismo. Ou seja: o município terá condições de atender a todo e qualquer pleito? De onde virão os recursos financeiros? O que deixará de ser satisfeito em virtude desse fato imprevisto, não contido no planejamento e, portanto, ausente da lei orçamentária?
            Essa reflexão há de ser feita por todos os profissionais da área jurídica, pois não existe almoço grátis. A conta vai ser satisfeita por alguém. A Carta de 1988 é ambiciosa e generosa, mas não tem a receita de aumentar o ingresso de numerário nos cofres públicos, onerados por uma visão tecnicamente perfeita, mas que esbarra na triste realidade dos fatos. O Brasil tem pretensões de primeiro mundo, para uma economia cuja definição pode ser fornecida pelo empresariado. Aquele que não tem por si o erário e que tem noção exata sobre o custo das coisas.
            Constata-se, assim, que até mesmo as melhores intenções e os mais elevados propósitos são hábeis a gerar efeitos perversos, que invalidam o conteúdo benéfico deflagrador de um processo. Começamos com os gregos, terminamos com os romanos: summum ius, summa injuria: o mais elevado grau de direito pode produzir a mais indesejável das injustiças.
José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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