sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Artigo: Escorço sobre a colheita compulsória de dna do acusado

Por Thiago Ruiz

A prova realizada com base em mostras genéticas é sem dúvida revestida de importância no processo penal hodierno. O avanço tecnológico acarretou a relevância da prova genética, que cada vez mais exige aprofundada análise sob suas circunstâncias e implicações na persecutio criminis. Trata-se de prova pericial que, às vezes, constitui o único elemento probatório que pode seguramente relacionar o autor do delito ao fato imputado.
Um dos vieses de maior discussão a respeito da prova genética cinge-se na (im)possibilidade de determinação judicial para o acusado realizar o exame. Veja que não se trata de exame de material genético colhido no local do crime ou descartado, como os encontrados em bitucas de cigarros e guardanapos, mas de obtenção de material genético por meio de intervenção corporal.
Os posicionamentos são divididos quanto à necessidade ou não do consentimento do acusado. Por um lado, Alejandro D. Carrió ensina que o acusado poderá ser obrigado a conceder mostra genética extraída de seu corpo, uma vez que o imputado é objeto de prova, de modo que a sua negativa não pode obstar o direito do Estado investigar delitos realizados quando houver fundadas suspeitas, e a inspeção corporal puder ajudar a esclarecer o delito, o que justifica o vencimento de “cualquier negativa de éste a prestarse a la medida en cuestión.”(1)
Ainda, há quem defenda que é possível a extração compulsória de mostras biológicas do imputado desde que o exame não traga perigo a sua vida ou saúde. Nesta esteira, ensina Carlos A. Carbone que: “La extracción de sangre, de cabellos y/o vello pubiano, muestras epiteliales, es legítima en contra de la voluntad del sindicado si cumple los requisitos indispensables de razonabilidad, proporcionalidad, necesidad, utilidad y pertinencia y no viola su derecho a la intimidad, la integridad física ni tampoco su dignidad humana, ya que solo afecta en forma leve la integridad corporal y no si viola la prohibición de tratos inhumanos y degradantes cuando son realizados por personas habilitadas y con el límite de no poner en peligro la vida o la salud. Tampoco es necesario su previo consentimiento para llevar a cabo la diligencia de extracción de muestra sanguínea.”(2)
De outra banda, Martín Huertas(3) admite que as intervenções corporais não podem ser impostas coercitivamente, nem por força física, nem utilizando outros meios de coação indireta, mas deve submeter-se tal circunstância ao crivo do ônus probatório, isto é, a negativa em colaborar com o exame deve ser considerada em desfavor do imputado. Sem embargo, tal magistério endossa a presunção. Ocorre que o campo da suposição é extremamente perigoso em sede de um processo penal que pretende ser democrático.
Por sua vez, Karl Heinz Gössel(4) afirma que a determinação compulsória pode ocorrer no processo penal desde que respeitado o princípio da proporcionalidade e a esfera de intimidade da pessoa. Ademais, aduz que é necessário observar se se trata de mostras genéticas ou de análise do genoma, de modo que a análise do genoma, por possibilitar o acesso ao código genético da pessoa, não pode ser permitido, enquanto a análise de mostras genéticas é admissível, uma vez que a prova apenas será relativa à identidade da pessoa.
Em seu turno, Maria Elizabeth Queijo(5) classifica o exame de DNA e as provas que implicam em intervenção corporal em invasivas ou não invasivas e afirma que as provas não invasivas são produzidas com respeito aos direitos fundamentais, contudo, conclui ser vedada a condução coercitiva do acusado para produzir prova contra si mesmo, de forma que a não exigência ao dever de colaborar, por se tratar de direito fundamental, apenas pode ser flexibilizada diante da ocorrência de delitos graves e para atender interesse público, sempre em consonância ao princípio da proporcionalidade, caso a própria Constituição limite o direito fundamental que assegura a não autoinculpação ou haja previsão legislativa para tanto, isto desde que diante de valores limitadores suficientemente importantes e através do crivo judicial previamente fundamentado em delitos graves, segundo a análise de cada caso em concreto.
Por outro lado, Aury Lopes Junior(6) assevera que, no processo penal contemporâneo, democrático, o imputado pode rechaçar o exame que corresponda à intervenção corporal, direito absoluto, que não deve ceder sequer em face ao princípio da proporcionalidade. Ainda lembra que a carga probatória incumbe a quem acusa, e o acusado não pode ser compelido a auxiliar a acusação a se livrar de um ônus que é seu.
A respeito da prova genética, a Argentina, há pouco (através da Lei 26.549, de 27 de novembro de 2009, que incluiu o art. 218 bis no Código Procesal Penal), disciplinou a obtenção de DNA do acusado na perseguição criminal. Segundo a normativa, o juiz poderá ordenar a obtenção de DNA do imputado ou de outra pessoa quando for necessário para a sua identificação ou para a constatação de circunstâncias de importância para a investigação, devendo a medida ser devidamente fundamentada, observada a sua necessidade, razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de nulidade. Para tanto, é permitida a mínima extração de mostras biológicas sem que provoque prejuízo à integridade física da pessoa que será submetida à medida, bem como sem que se afete seu pudor. Ainda, prevê a legislação que a autoridade judicial poderá ordenar a extração de DNA por outros meios que não a colheita de amostras corpóreas, como a busca de objetos que contenham células desprendidas do corpo.
Nesta toada, encontram-se dispositivos similares nos ordenamentos processuais estrangeiros, como o disposto no Codice di Procedura Penale italiano, em seus arts. 244 e seguintes. Na Alemanha, que disciplina a matéria no § 81 da StPO. No art. 171 do Código Processual Penal português. Contudo, nem todos são tão exaustivos como a norma processual argentina ao disciplinar a determinação do exame genético.
Por sua vez, a legislação brasileira é órfã de qualquer previsão legal a respeito da colheita de mostras corporais para exame de DNA no processo penal, apenas registrando disposição geral acerca das provas periciais e o exame de corpo de delito.
Ainda, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal,(7) ao analisar o caso Glória Trevi – a cantora mexicana que foi submetida a processo de extradição, que, enquanto recolhida ao cárcere, engravidou e acusou policiais federais de estupro do qual seria vítima –, a Suprema Corte autorizou a realização de exame de DNA na placenta da cantora, colhida após o parto. Assim, entendeu a Excelsa Corte que, diante da honra e da imagem dos policiais e do interesse público, poderia ser franqueada a intimidade do nascituro e a preservada a identidade do pai. Entretanto, observa-se, no presente caso, que o exame de DNA foi realizado de modo não invasivo. Desta forma, resta indeterminado o posicionamento do STF a respeito da colheita compulsória de DNA através de intervenção corporal no acusado.
Deveras, falta ao presente tema maior debate sobre os limites e a admissibilidade da prova genética no processo penal, quer pela importância das questões que suscita, quer pelos seus reflexos sociais. Sem olvidar que o acusado deve ser considerado como sujeito de direitos e não como objeto de provas. Nesta esteira, certo é que a determinação da colheita compulsória de material genético no corpo do acusado implica em ofensa a direitos fundamentais e a princípios constitucionais, o que implica na imposição de limites determinados à obtenção de informação genética, isto para que não sejam atropeladas garantias constitucionais nem seja reverenciado o arbítrio.

NOTAS

(1) CARRIÓ, Alejandro D.Garantías constitucionales en el proceso penal. 5. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2008, p. 527.
(2) CARBONE, Carlos A. La prueba penal ante la coerción del imputado. Rosario: Nova Tesis, 2007, p. 107-108.
(3) HERTAS, Martín. El sujeto pasivo del proceso penal como objeto de la prueba. Barcelona: Bosch, 1999, p. 410-413.
(4) GÖSSEL, Karl Heinz. El derecho procesal penal en el Estado de Derecho. Santa Fe: Rubinzal-culzoni, 2007,p. 321.
(5) QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 317.
(6) LOPES JR., Aury. Direito processual penal. v. 1. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 615-617.
(7) Reclamação 2.040-1/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 21.02.2002, DJU 24.06.2003.


Thiago Ruiz,  Advogado criminalista. Professor de Processo Penal na Universidade Norte do Paraná.
Mestrando pela Universidad del Museo Social Argentino.

Como citar este artigo: RUIZ, Thiago.Escorço sobre a colheita compulsória de dna do acusadoIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 14-15, jan., 2011. 

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