terça-feira, 19 de agosto de 2008

Artigo: Algumas considerações sobre as implicações da alteração da tipificação do delito de embriguez ao volante na autuação em flagrante delito

I. Introdução:

Em meados do mês de junho do corrente ano, entrou em vigor a Lei n. 11.705/2008, que, além de modificar tipificações e sanções administrativas, alterou o tipo penal do art. 306, da Lei n. 9503/97.

Embora festejada pela opinião pública como sendo solução para o alto índice de mortes e lesões de trânsito causadas pela conjugação dos fatores direção e consumo de bebidas alcoólicas, a supracitada modificação, no que se refere à autuação em flagrante delito e a responsabilização criminal, abrandou a legislação já existente sobre a matéria.

II. Requisitos para a autuação em flagrante nos moldes da redação anterior do art. 306, da Lei n. 9503/97.

A redação anterior do supracitado artigo descrevia o delito de embriaguez ao volante nos seguintes termos:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

O supracitado delito, na mesma linha dos demais crimes descritos no Código de Trânsito, visou proteger a incolumidade pública no que se refere à segurança do trânsito.

A doutrina classificou a embriaguez ao volante como delito de lesão e de mera conduta, sendo necessária demonstração, além dos demais requisitos do enquadramento típico, da condução anormal do veículo, em via pública, pelo motorista sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos.

Nesse sentido, ao conduzir o veículo de forma anormal, o motorista embriagado reduz o nível de segurança protegido pela norma penal incriminadora, sendo dispensável a demonstração de perigo concreto a bens jurídicos de pessoas determinadas.

No que concerne especificamente à autuação em flagrante delito, apresentado o motorista no órgão de polícia judiciária competente sob a alegação de ter sido surpreendido, com claros indícios de embriaguez, dirigindo de forma anormal veículo automotor, perfectibilizados estavam os requisitos para a lavratura do auto de prisão em flagrante, com a devida fixação da fiança policial, desde que preenchidos os requisitos do art. 321 e seguintes do Código de Processo Penal.

Sublinha-se que, de acordo com a redação anterior, o tipo penal do delito de embriaguez ao volante exigia a demonstração da influência de álcool ou substância de efeitos análogos e a condução do veículo automotor de forma anormal em via pública, não existindo qualquer determinação quando ao meio de prova exigido para tanto.

Dessa forma, a rotina das lavraturas de auto de prisão em flagrante satisfazia-se com a prova testemunhal, costumeiramente, dos agentes dos órgãos de trânsito (agentes municipais de trânsito, policiais militares e policiais rodoviários federais) sobre a condução anormal e existência de indícios visuais e comportamentais da embriaguez.

Durante a coleta das provas preliminares, ocorriam duas situações, dependendo da colaboração do conduzido: 1) submetendo-se o flagrado ao teste do etilômetro, vulgarmente conhecido como bafômetro, e restando configurada a prova da influência do álcool, bastava ser comprovada, por prova testemunhal, a direção anormal, em via pública; 2) não sendo realizado o supracitado exame, restava ao condutor do flagrante e às testemunhas demonstrar a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, por prova testemunhal (geralmente efetuada pela elaboração de auto de constatação firmado por duas testemunhas) e a condução anormal do veículo, em via pública.

Ressalta-se que, em ambos os casos, o exame do etilômetro somente poderia ser realizado com a expressa concordância do motorista, haja vista os ditames constitucionais relativos à prova penal.

Assim, não existindo determinação típica do modo de demonstração da influência de álcool ou substância de análogos efeitos, a prova preliminar para efeito de autuação em flagrante poderia ser feita por todos os meios em direito admitidos.

Sinaliza-se que o conhecido limite de seis decigramas de álcool por litro de sangue era considerado, exclusivamente, para efeitos administrativos.

II. A nova redação legal e as implicações para a autuação em flagrante pela autoridade de polícia judiciária.

A redação típica da embriaguez ao volante, conferida pela nova legislação, prescreve:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:(…) Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Com a simples leitura da nova tipificação legal, resta claro que a redação exige a realização de exame de teor alcoólico sanguíneo e abre a possibilidade, após regulamentação, de equivalência entre testes distintos de alcoolemia, como o etilômetro.

Nessa linha, o Decreto n. 6.488, de 19 de junho de 2008, preencheu a norma penal em branco da nova redação do art. 306, do CTB, equiparando o resultado igual ou superior a seis decigramas por litro de sangue – exame sanguíneo - à concentração igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões – exame do etilômetro.

Observando a nova prescrição típica, emergem duas linhas de raciocínio possíveis: 1) teria o legislador, além da comprovação do estado de embriaguez alcoólica determinada pela quantificação de álcool por litro de sangue ou pelo resultado do teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro ou bafômetro), mantido a exigência da demonstração da condução anormal de veículo automotor, em via pública, ou; 2) por outro lado, ante a omissão da expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, teria o legislador se contentado com a simples direção de veículo automotor, em via pública, estando o condutor com concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões.

Pela observação literal do tipo penal em análise, transparece o entendimento de que o novo delito narrado pelo art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro, perfectibiliza-se, tão-somente, com a simples constatação da concentração alcoólica descrita no tipo penal e o tráfego na direção de veículo automotor em via pública, visto que a nova descrição típica não mais adota a elementar “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Diante disso, resta demonstrado que o novo delito de embriaguez ao volante classifica-se como delito de perigo abstrato, sendo presumida a lesão à segurança no trânsito, com a condução de veículo, em via pública, e a constatação dos índices constantes no tipo penal e no regulamento complementador da referida norma penal em branco.

Assim, a nova legislação acarretou invencível problema à autuação em flagrante pelo delito de embriaguez ao volante, no caso do álcool, visto que, caso não exista colaboração do motorista, impossível se torna a lavratura do auto e, até mesmo, a posterior punição criminal, pela exigência, estrita e explícita, feita pelo tipo delitivo da quantificação pericial alcoólica no sangue ou no ar dos pulmões, a qual somente pode ser feita, de acordo com os ditames constitucionais, com a autorização expressa do examinado.

Em relação à influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, resta claro que a parte final do artigo em observação direciona-se à influência de outras substâncias que não o álcool, expressamente tratado na primeira parte do tipo.

Nesse caminho, pela experiência legislativa anterior, verifica-se que o legislador, através de novas disposições, impôs tratamento diferenciado no que concerne à prova da embriaguez alcoólica e da embriaguez decorrente da influência de substância psicoativa que determine dependência, visto que, ao contrário do álcool, que exige perícia específica de dosagem álcool/sangue ou álcool/ar pulmonar, a prova dos demais tipos de embriaguez segue sendo livre, desde que não contrarie a legislação penal e constitucional vigentes.

III. Conclusão:

Diante do quadro exposto, constata-se que é ilegal qualquer autuação em flagrante pelo delito de embriaguez ao volante, mesmo afiançada, sem o devido exame, sangüíneo ou de ar pulmonar, quantitativo da concentração alcoólica.

Além disso, é necessário observar que, por impedimento constitucional, não poderá o motorista ser obrigado a fornecer amostra sangüínea ou submeter-se ao teste do etilômetro para a realização do exame de concentração etílica (álcool/sangue ou álcool/ar pulmonar alveolar). Fato que, inegavelmente, inviabilizará, além da autuação em flagrante delito, o processamento criminal do motorista embriagado pela ausência de enquadramento típico criminal.

Giza-se que a divulgada obrigatoriedade de o motorista se submeter ao teste de constatação de embriaguez e a possibilidade do agente de trânsito comprovar a embriaguez por outras provas em direito admitidas, restringem-se à esfera administrativa, no que concerne a aplicação das sanções do art. 165, do Código de Transito Brasileiro, não possuindo qualquer influência na seara criminal sujeita a critérios interpretativos e sistemáticos próprios.

Destarte, apesar do divulgado endurecimento do tratamento penal do tipo delitivo, a autuação em flagrante pelo crime de embriaguez ao volante pelo consumo de álcool, e até mesmo seu processamento criminal, restou dificultada ante a delimitação típica substantiva dos meios de prova legalmente admitidos, quais sejam, exame sangüíneo ou o resultado do teste em aparelho de ar alveolar pulmonar, aos quais não pode o motorista ser compelido, sob pena de infringência dos mais básicos direitos constitucionais penais.

Assim, resta claro que, na ânsia de utilizar a repressão penal como inibidora de problemas sociais, acabou o legislador, a exemplo da antiga Lei de Tóxicos – 10.409/02, inviabilizando a repressão criminal pela elaboração de tipo penal inaplicável e incompatível com a norma Constitucional.

Rodrigo Kegler Duarte, Delegado de Polícia/RS.

DUARTE, Rodrigo Kegler. Algumas considerações sobre as implicações da alteração da tipificação do delito de embriguez ao volante na autuação em flagrante delito. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 18.08.2008.

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