Foi libertado recentemente, depois de passar 19 anos na prisão, o autor de um crime que causou comoção nacional nos EUA. Andrew Goldstein, que sofria de esquizofrenia desde a juventude, empurrou Kendra Webdale para o trilho do metrô de Nova York, quando o trem já se aproximava.
A reação governamental à morte de Kendra, escritora em início de carreira, foi aprovar uma lei, a toque de caixa, para tentar impedir a repetição da tragédia. O estado aprovou, sem muita discussão, a Lei de Kendra (Kendra’s Law) — uma lei que dá poder a juízes de ordenar o tratamento compulsório de pessoas com problemas mentais sérios, se elas podem causar danos a outros e a si mesmas. O tratamento pode envolver internação.
No calor da emoção, a medida ultrapassou rapidamente as fronteiras do estado de Nova York. Outros 45 estados aprovaram leis semelhantes — que são chamadas nos EUA de copycat laws, em que estados copiam, uns dos outros, leis de que gostam (mesmo que façam adaptações).
A prioridade para pedir na Justiça o tratamento compulsório de um paciente com problemas mentais é da família. Médicos e autoridades encarregadas de livramento condicional também podem fazer o pedido. Mas quem inicia o processo, normalmente, é a polícia, quando é chamada para resolver algum problema causado pelo paciente.
Nesta semana, a notícia da libertação de Goldstein gerou um amplo debate sobre a Lei de Kendra, que tem muitos defensores e muitos opositores. Mas a principal crítica é a de que, para o bem ou para o mal, a lei não funciona. E a principal razão é que o sistema de saúde mental do estado não funciona de forma adequada, de acordo com os jornais New York Post, The New York Times e outras publicações.
O programa de tratamento ambulatorial assistido de Nova York estabelece, com base na lei, que os hospitais devem dar prioridade ao tratamento de pacientes encaminhados por ordem judicial, incluindo furar a fila.
Mas esse não é provavelmente um bom negócio para os hospitais, onde os médicos são pressionados a dar alta a esses pacientes tão rapidamente quanto possível. E os hospitais relutam em encaminhar pacientes para o programa, porque esse é um processo que dá muito trabalho e consome muito tempo, porque envolve a aprovação por um juiz. Um dos problemas é que não há dinheiro suficiente para tocar o programa.
As estatísticas oficiais indicam que há 3.158 pacientes mentais em tratamento compulsório no estado de Nova York. Porém, mais de 8 mil pacientes com deficiência mental séria se qualificariam para participar do programa, disse aos jornais o diretor-executivo da Mental Illness Policy Org, D. J. Jaffe.
Andrew Goldstein foi um dos pacientes descartados pelo sistema, antes de cometer o crime que chocou o país. Ele tinha sido tratado pela última vez havia seis meses e foi liberado, apesar de seu histórico de problemas, que resultaram em mais de uma dúzia de internações.
“Se eu estivesse tomando os meus remédios, não teria cometido esse crime horroroso. Não consigo entender por que fiz isso”, disse aos promotores que iam levá-lo a julgamento. Mas não houve julgamento. Ele fez um acordo de confissão e foi sentenciado a 23 anos de prisão, que foram reduzidos para 19, por bom comportamento.
Ao sair da prisão, Goldstein anunciou que queria fazer parte do programa criado pela Lei de Kendra, cuja criação ele provocou, para não voltar a cometer crimes. Mas, provavelmente, isso não será possível. A lei estabelece algumas restrições, entre as quais a de que apenas pacientes que cometeram atos de violência nos últimos 48 meses se qualificam — embora a lei também leve em consideração pacientes que foram presos.
Esse é um dos problemas do programa, dizem os críticos. Os pacientes só conseguem ajuda com a intervenção da Justiça, depois de serem descartados pelo sistema de saúde mental e cometerem algum ato de violência.
Isso acontece também porque os familiares dos pacientes psiquiátricos não sabem que podem buscar a ajuda da Justiça, quando um tratamento mais eficaz e duradouro é necessário. Só descobrem quando a polícia aparece.
Para os opositores da lei, nada disso seria necessário se o sistema de saúde tivesse interesse e vontade de tratar os pacientes regularmente, antes que a doença os levasse a cometer atos de violência.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 16 de setembro de 2018.
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