A ideia de recuperar a credibilidade das instituições, em especial do Poder Judiciário, tem sido associada à necessidade de se punir mais pessoas e mais rapidamente. Essa lógica levou o Brasil ao patamar de terceira maior potência mundial em encarceramento e tomou conta da agenda política brasileira, dos debates judiciais, a ponto de, em 2016, o Supremo Tribunal Federal autorizar a execução provisória de condenações mesmo quando ainda pendente de julgamento algum recurso nas instâncias superiores (STJ e STF).
Recentemente (2/2/2018), o Superior Tribunal de Justiça divulgou notícia em seu site oficial sobre uma pesquisa que apresenta dados sobre os julgamentos de ações penais (recurso especial e agravo em recurso especial) no próprio STJ. No mesmo dia, os ministros Roberto Barroso (STF) e Rogério Schietti (STJ) escreveram artigo na Folha de S.Paulo tecendo comentários sobre a pesquisa. Anunciaram, os ministros, que o STF, ao “permitir a execução da pena após a decisão de segundo grau”, alterou a sistemática de impunidade no Brasil. No entendimento dos ministros, o percentual de absolvição (0,62%) e de substituição da pena privativa de liberdade (1,02%), em dois anos, é mínimo. Segundo eles, esses dados revelam “o baixo número de decisões reformadas que produzem impacto sobre a liberdade dos condenados”. Concluem os ministros que “é ilógico moldar o sistema em função da exceção, e não da regra”.
Um olhar mais detalhado aos números desse estudo, no entanto, coloca essa afirmação em xeque.
Foram 68.944 decisões analisadas, e 14,1% (9.725 decisões) indicam alteração da decisão dos tribunais inferiores. Desse total, 427 decisões foram de absolvição. Significa dizer que essas pessoas tiveram iniciada a execução de suas penas indevidamente. O Estado prendeu e privou a vida livre de 427 pessoas erroneamente. É pouco? É exceção? Quantos de nós (ou quantos ministros) estariam dispostos a serem um destes 427 cidadãos? Vamos adiante.
A pesquisa afirma ainda que em 6,44% das decisões houve diminuição da pena. Isso significa que 4.439 pessoas tiveram suas penas reduzidas, com impacto direto em suas liberdades. Afinal, a diminuição da pena pode significar que o condenado não cumprirá sua pena em regime fechado, ou terá sua pena de prisão substituída pela prestação de serviços à comunidade, por exemplo. Quantas milhares de pessoas foram prejudicadas pelos erros que o STJ corrigiu?
Além disso, quantos recursos especiais e agravos em recursos especiais deixaram de ser concedidos, pois as questões já tinham sido corrigidas por meio de Habeas Corpus? Nesse caso, não fossem os recursos simultâneos aos HCs, quantas mais pessoas teriam sido presas indevidamente?
Quando ministros das mais importantes cortes do país afirmam que a execução da sentença após o julgamento em segundo grau está diretamente vinculado à ínfima possibilidade de reforma pelos tribunais superiores, nos fazem questionar a própria importância daqueles tribunais. Afinal, se um ministro afirma que seu julgamento é irrelevante, irrelevante também será seu julgador.
Ademais, se os tribunais superiores não dão conta de julgarem todos os casos que lhes chegam às mãos, a culpa certamente não é dos recursos em matéria criminal, que representam uma parcela muito pequena do total de casos.
Por que então não mudar a regra e executar decisões cíveis, tributárias ou administrativas em vez das criminais? Por que a liberdade das pessoas é considerada menos importante do que seus bens, seus impostos ou sua relação com o governo? Por que não punir o maior litigante (litigante profissional) desses tribunais, que é o próprio Poder Executivo, em vez do cidadão marginalizado e pobre que representa a maioria dos casos criminais?
Olhar o sistema de Justiça criminal apenas por números, sem levar em consideração as pessoas que esses números representam, só é compreensível na lógica do eficientismo penal de fins perigosos. Muito embora se saiba que os dados apresentados pela pesquisa feita pela Coordenadoria de Gestão da Informação do Superior Tribunal de Justiça são absolutamente verdadeiros, as conclusões que decorrem desses dados são mais complexas do que indicam as considerações dos ministros Roberto Barroso e Rogério Schietti.
Os mesmos números permitem afirmar que: i) o número de decisões que alteram a situação dos réus é muito grande e qualquer erro que prive alguém da sua liberdade não tem como ser reparado; ii) há uma quantidade enorme de Habeas Corpus, substitutivos aos recursos ordinários, prejudicando o julgamento destes, o que torna esse número de injustiças muito maior; iii) nossa Constituição determina que as pessoas devem permanecer livres enquanto não terminar o processo contra elas, salvo necessidade justificada em cada caso; iv) a demora nos julgamentos pelos tribunais superiores não é causada pelos recursos em matéria pena, nem pelas pessoas que recorrem (30 dias a menos de férias agilizaria os julgamentos, quem sabe); e, finalmente, v) se os tribunais superiores não conseguem cumprir a Constituição, não é ela quem deve sofrer uma mutação, mas os tribunais.
Thiago Bottino do Amaral é advogado, doutor em Direito e professor da FGV Direito Rio e da Columbia Law School (visitante).
Sergio F. C. Graziano Sobrinho é advogado, doutor em Direito e professor da Universidade de Caxias do Sul (RS).
Revista Consultor Jurídico, 8 de fevereiro de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário