A intenção do governo Michel Temer (MDB) de requisitar mandados de busca e apreensão coletivos para operações em comunidades carentes do Rio de Janeiro vem gerando polêmica no meio jurídico. Mas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já permite a invasão de casas mesmo sem ordem judicial em caso de suspeita de crime em flagrante — como guarda de drogas e posse de armas. E esse entendimento deve bastar para validar revistas sem aval da Justiça em casas de moradores de favela.
Após o governo anunciar a intervenção na área de segurança do Rio, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou que as operações de militares e policiais iriam precisar de mandados de busca e apreensão coletivos, que abrangeriam uma área inteira, como uma rua ou um bairro. Segundo ele, a medida é necessária devido à “realidade urbanística” das favelas cariocas, onde “bandidos” perseguidos se deslocam entre diferentes casas.
No entanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considera mandados sem identificação de endereço ilegais — sendo causa de nulidade processual. Para contornar esse obstáculo, o governo passou a estudar um projeto de lei para autorizar buscas coletivas.
A ideia foi duramente atacada pela comunidade jurídica. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a seccional da OAB-RJ anunciaram que analisam medidas judiciais contra a iniciativa. Procuradores da República e defensores públicos federais disseram que ela viola direitos fundamentais. E o decano do STF, ministro Celso de Mello, apontou que ordem de busca genérica contraria a presunção de inocência.
Após a chuva de críticas, o governo Temer passou a defender outranomenclatura para defender a validade de mandados de busca e apreensão no Rio de Janeiro. O Ministério da Justiça prefere usar agora o termo “mandados com múltiplos alvos” — segundo a pasta, sempre com nomes dos suspeitos.
O chefe da pasta, Torquato Jardim, informou que os pedidos podem ser baseados em posições de GPS e descrevendo áreas das comunidades: “As zonas de conflito no Rio de Janeiro têm urbanização precária, os endereços não são todos facilmente localizáveis”.
Regra clara
Os ataques à ideia do governo, que partiu do interventor federal no Rio, general Walter Souza Braga Netto, têm fundamento. O artigo 5º, XI, da Constituição, estabelece que a casa é “asilo inviolável do indivíduo”. Sendo assim, só é possível adentrá-la com o consentimento do morador ou autorização judicial, ou em situações excepcionais, como em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro.
E o mandado de busca e apreensão deve indicar a casa em que será feita a diligência, o nome do proprietário ou morador e mencionar o motivo e os fins da ação, segundo o artigo 243 do Código de Processo Penal. Dessa forma, a lei é clara ao proibir a expedição de ordens que não atendam aos requisitos legais — como as coletivas.
Na prática, porém, uma decisão do STF de 2015 já permite que militares e policiais invadam casas em favelas do Rio. Na ocasião, a corte firmou a seguinte tese de repercussão geral:
“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”.
O entendimento ampliou as exceções do artigo 5º, XI, da Carta Magna, que permite a entrada em residência para cumprir aval judicial apenas de dia.
A intervenção federal no Rio busca, principalmente, combater traficantes de drogas. Manter entorpecentes em depósito ou guardá-los é crime permanente, destacou Celso de Mello no julgamento de 2015. E nesse tipo de infração, o agente está sempre em flagrante delito, conforme o artigo 303 do CPP. O mesmo vale para a posse e o porte ilegal de arma de fogo — prática comum entre traficantes no Rio.
Assim, ao perseguir vendedores de drogas, os militares e policiais já têm um argumento para invadir casas sem mandado judicial, afirma a professora da FGV-SP Heloisa Estellita. Afinal, eles podem alegar que os suspeitos guardavam entorpecentes e portavam armas; logo, estavam em flagrante. E a 2ª Turma do Supremo também já decidiu que é possível fazer busca e apreensão sem mandado judicial em caso de crime permanente.
A criminalista Maíra Fernandes, ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, discorda. Para ela, só é possível adentrar uma casa sem aval da Justiça em casos de risco. Ela exemplifica: “Se um casal está brigando, a mulher está gritando por socorro, há evidentemente fundados motivos para supor que ali há situação de flagrante delito. É nesse caso que pode entrar”.
Abusos legitimados
A decisão do Supremo pode gerar excessos. Afinal, as razões para a invasão só precisam ser explicadas posteriormente, e dificilmente haverá testemunhas e provas suficientes para demonstrar que militares ou policiais agiram de forma ilegal.
Contudo, a intenção do governo de pedir mandados de busca e apreensão coletivos tem o objetivo de legitimar ações abusivas das forças de segurança, avaliam Maíra Fernandes e Heloisa Estellita.
“É legitimar algo que já ocorre atualmente, na mais completa ilegalidade, nas favelas cariocas, onde é comum que a polícia entre com o pé na porta e revire as casas, sem mandado algum. O artigo 243 do CPP é claro no sentido de que o mandado deve indicar a casa, o nome do proprietário ou morador. A nossa Constituição garante a todos — do asfalto e da favela, ricos e pobres — o direito à inviolabilidade do domicilio, à privacidade. Isso é coisa séria, que não pode ser relativizada, para que sejam feitas ações pirotécnicas, que desrespeitam direitos fundamentais, mas aparecem bem na TV”, declara a ex-presidente do Conselho Penitenciário fluminense.
Segurança jurídica
O ministro Alexandre de Moraes, na época secretário de Segurança Pública de São Paulo, comemorou a decisão do STF que autorizou policiais a entrarem em domicílios sem mandado judicial se houver fundadas razões de que ocorre flagrante delito no local. À ConJur ele disse que o posicionamento da corte aumenta a segurança das ações das polícias e acaba com as divergências que existiam sobre o assunto no Judiciário.
Moraes explicou que os tribunais há tempos discutiam em que situações agentes de segurança deveriam ser punidos ou absolvidos por invadir uma casa sem autorização. Com a decisão do STF, ele disse que essa discussão acabou, pois ficou estabelecido que se houver fortes indícios, mas nenhum crime for constatado, os policiais não podem ser punidos, pois agiram de boa-fé. Contudo, Alexandre de Moraes deixou claro que aqueles que cometerem abusos deverão responder por eles.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2018.
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