Em meio a manifestações contra corrupção e clientelismo no Estado brasileiro, premia-nos o Congresso Nacional com a aprovação de projeto que define organização criminosa, bem como oferece tipo legal.
Curioso ver-se a repetição da história. Diante dos grupos que se insurgiam contra os desvios da Revolução Francesa, veio o Code Pénal de 1810 criminalizar a associação de malfeitores. No Brasil, desde os fins do século XIX, vozes exigiam a tipificação da associação para delinquir, delito não previsto no Código Penal de 1890, pois se almejava perseguir aqueles contrários à República recém-proclamada. No Código de 1940, Nelson Hungria acolheu a sugestão do Projeto Alcântara Machado e positivou, entre nós, o crime de quadrilha, ou bando (artigo 288, do CP)[1].
Tanto no exterior como aqui, tipificar a associação criminosa mostra-se modo de conferir poder ao Estado para antecipar-se à prática do crime, segundo a doutrina penal positivista — uma ideia cuja eficácia jurídica nunca se viu, pois, da quadrilha, ou bando, só se ouve após a perpetração do crime. No mais das vezes, ainda hoje, surge a quadrilha como incremento nas acusações para se pleitearem, em juízo, medidas cautelares no processo penal.
No século passado, intensificou-se a observação do fenômeno mafioso, o qual inspirou literatura e cinema, assim como fez parlamentares do mundo ocidental perderam dias a debater meios para "combater" o inimigo, com mais olhos para a exposição na mídia do que para elaborar bons conceitos de Direito. O tema interessou à Organização das Nações Unidas e acarretou a elaboração da Convenção de Palermo (Decreto 5.015/2004).
O assunto sempre despertou interesse nos Estados Unidos da América por ser objeto de importantes pesquisas de criminologia, muitas a evidenciar ser útil tal instrumento jurídico para prender por conveniência, ou até mesmo por preconceito racial.
O que impressiona no Brasil atual é desperdiçaram-se anos de estudo sobre organização criminosa e de aplicação do artigo 288, do Código Penal, graças ao oportunismo dos parlamentares, que responderam às passeatas com a criminalização da associação de mais de quatro pessoas.
A coincidência mostra-se sintomática, porque indica o caráter político e ideológico que envolve essa espécie de infração penal, inserida nos crimes contra a paz pública. Também aponta o incremento do risco de arbitrariedades na aplicação da lei penal, graças a texto projetado que peca pela vagueza e impropriedade técnica[2].
Outra vez, abusou-se do advérbio de modo, o que torna aberta a interpretação. Há "estruturalmente", "informalmente", "direta e indiretamente", diversos vocábulos a colaborar com o empobrecimento do conteúdo jurídico-penal e a dificultar a aplicação da lei.
Chama atenção ter se incluído na definição o "objetivo de obter vantagem", o que restringe o elemento subjetivo, afinal, será necessário reconhecer um possível fim econômico na conduta, ou alguma outra espécie de vantagem — característica do projeto apta a contribuir com a percepção de que os integrantes do Congresso Nacional desconheciam os rudimentos da dogmática penal, posto que limitaram a tipicidade sem nem perceberem que o fizeram.
Ao mesmo tempo, quer-se estender a abrangência da definição legal a organizações terroristas, as quais agem sem intuito de vantagem, muitas vezes. Não obstante, esquece-se da lacuna de tipo legal no direito pátrio, que se reduz a mencionar terrorismo na Lei de Segurança Nacional (artigo 20, da Lei 7170/1983)[3].
E, pela milésima vez, afere-se a negligência do redator no exame do núcleo do tipo do artigo 2º, do Projeto[4]. Afinal, mero conhecimento da língua portuguesa leva a concluir que não há lógica na escolha dos verbos "promover, constituir, financiar ou integrar".
Também não se compreende o porquê de incluir "pessoalmente ou por interposta pessoa", aspecto despiciendo diante do artigo 29, do Código Penal, e que torna, em certa medida, risível a literalidade de integrar organização criminosa por interposta pessoa, diante da impossibilidade de falar-se da pessoa jurídica na hipótese.
Embaraçar a investigação criminal — forma de crime contra a administração da Justiça — tem a pena equiparada à do caput, o que denota a ausência de razoabilidade, porque a gravidade objetiva da conduta não equivale àquela prevista no artigo 2º (artigo 2º, parágrafo 1º)[5].
Na pena, repetiu-se o equívoco de conferir ampla margem de diferença entre a mínima e a máxima, de três a oito anos. O absurdo se percebe, ainda, no aumento de um sexto a dois terços quando "as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização". Ora, a transnacionalidade exsurge característica da definição legal de organização criminosa (artigo 1º)[6], portanto, não poderia ser razão para aumentar a pena.
Por fim, nada como a retórica populista para fazer incluir os parágrafos 6º e 7º[7], do artigo 2º. Sabe-se de raiz que tais consequências já estão no ordenamento jurídico e nada acresce tal previsão, a não ser querer conferir uma suposta aura de severidade no trato dos funcionários públicos.
Em suma, o projeto aprovado envergonha os juristas, vai nos constranger perante a comunidade internacional e trará muita dor de cabeça ao aplicador do Direito, o consumidor final de mais esse produto da ignorância que habita nosso Parlamento.
[1] Art. 288- Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:
Pena- reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Paragrafo único: A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.
[2] Art. 1° Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e procedimento criminal a ser aplicado. § 1° Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
[3] Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único- Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.
[4]Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
[5] § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
[6] Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
[7] § 6º A condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequente ao cumprimento da pena. § 7º Havendo indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará inquérito policial, comunicando ao Ministério Público, que designará membro para acompanhar o feito até a sua conclusão.
Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo é advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito na USP e pós-doutorando na Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 5 de agosto de 2013
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