“Não se pode servir a um tempo a dois senhores” (Mateus 6:24), diz a conhecida expressão. Parece que ultimamente o ditado tem ampla incidência aos membros do Ministério Público, sobretudo àqueles pertencentes aos Estados-membros da federação brasileira.
Com essa breve anotação, quero lembrar aquilo que muitos têm chamado de uma “superafetação de poderes” daquela importante instituição da República brasileira. Será justa a acusação? Vejamos. Como todos sabem, o Ministério Público foi dotado de amplos poderes e competências na Constituição de 1988.
É sabido que o Ministério Público atuou na Constituinte de 1988 com um poderoso “lobby” em defesa das competências que entendia ser mais convenientes para defender a sociedade. Dizem que talvez apenas os militares, o sistema financeiro e a bancada ruralista não ultrapassaram o Ministério Público em organização de seu lobby à ocasião.
O problema é que, com o tempo, o chamado “lobby” do MP atuou com tal voracidade para captar garantias de independência (e inimputabilidade) que nem mesmo a instituição conseguiu evitar os abusos de seus membros.
A regra matriz da competência do Ministério Público, como se sabe, está no artigo 127 da Constituição Federal. Incumbe-lhe defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
Inegável a importância de tais atribuições. Não discuto esse ponto. Vem o Ministério Público cumprindo o seu papel ou tem desbordado de seu papel dentro e na política corporativista, desviando-se de sua missão primordial?
Chamo a atenção para alguns sérios desvios, alguns atribuíveis a seus membros (homens são falíveis e os promotores de Justiça não são exceção), outros atribuíveis à própria instituição (MP) e a seu regramento.
Como desvios corriqueiros que têm atormentado a advocacia brasileira, tomem a grande incidência de ações promovidas contra os advogados e agentes públicos no legítimo exercício de suas funções.
Não há comarca em que o promotor de Justiça não opine sobre qualquer política pública adotada ou em discussão pelo município. O mesmo ocorre quando se discute políticas públicas na Câmara Municipal. Comportamento adequado e funcionalmente equilibrado? Creio que não.
São muitas as exigências e complexidades do Estado e das empresas governamentais, como se sabe. Pois é comum o questionamento do Ministério Público quando o agente público contrata advogado sem licitação, diante das expressas hipóteses previstas na Lei de Licitações.
Comportamento adequado e funcionalmente equilibrado? Creio que não.
Diante de exageros e ações temerárias, surgem reações naturais de toda a sociedade. O equilíbrio (e a chamada “separação” de Poderes) e a natural competência de cada um deles, exige prudência, moderação de toda e qualquer instituição e do agente público, mesmo e sobretudo daqueles destinados à nobre função fiscalizadora.
Um bom exemplo de reação social foi em relação à PEC 37, equivocadamente derrubada pelo Congresso Nacional por temor circunstancial da opinião pública e por uma flagrante manipulação da imprensa, que repetiu, sem conhecer, os argumentos do Ministério Público.
Na verdade, como todos sabem, houve, novamente, um monumental esforço de lobby e marketingpara passar a mensagem da “mordaça”. Muitos sucumbiram a essa versão fantasiosa e manipuladora da realidade.
Em momento algum a PEC 37 pregava a “mordaça” ou a diminuição de seus poderes fiscalizatórios. Apenas reforçava as competências constitucionais diante de sucessivos abusos do Ministério Público em vários campos em que exerce sua “fiscalização” (sic).
Como afirma o Prof. José Afonso da Silva, um profundo conhecedor do Direito Constitucional e da Constituição de 1988 (assessorou, inclusive, os trabalhos desenvolvidos no processo constituinte), “o Ministério Público não recebeu da Constituição o poder para promover investigações diretas na área penal”(Parecer PEC 37).
As recentes ações (inquéritos) de investigação “livre”(sem peias) do Ministério Público no campo civil, penal, administrativo, financeiro e tributário atropelam direitos constitucionais e, portanto, exorbitam totalmente os limites a ele atribuídos.
Como regra geral, o MP evita instaurar Inquérito Civil, dando oportunidade de defesa ao acusado. Prefere abrir um procedimento investigativo “interno” para colher o investigado (vítima) de surpresa. Essa é, por exemplo, a fonte de tantas ações de improbidade claramente temerárias
Como ensina José Afonso da Silva no mesmo trabalho, “Na verdade, na prática, serve-se o Ministério Público ou do Inquérito Civil ou de procedimento administrativo, diretamente, como meio de proceder a investigações na esfera criminal. Como se disse antes, isso constitui um desvio de finalidade, uma fraude à Constituição que não lhe confere tal poder”.
Até linhas telefônicas têm sido grampeados indistinta e injustificadamente pelo Ministério Público, que pretende, em vários campos, substituir-se à ação policial, à margem da Constituição Federal. Sabe-se que o Ministério Público tem adquirido sofisticados equipamentos de última geração para captar conversas e “subsidiar” investigações, o que é intolerável. Quem ficalizará o fiscal?
É inadmissível que aquele órgão, que pretende (supostamente) defender a sociedade, passe a atuar atropelando direitos como se fosse uma verdadeira agência de inteligência governamental.
Entrevistem-se advogados criminalistas, advogados que lidam com o Direito Público no Brasil, procuradores públicos, agentes públicos de Norte a Sul do país, e todos responderão em uníssono: Os abusos na atuação do Ministério Público têm aumentado dia a dia.
Além de abusos, o Ministério Público imiscui-se corriqueiramente em assuntos de grande irrelevância social. Tome-se o exemplo da recente mudança de certidão de nascimento de um ministro do Tribunal de Contas da União (cujo registro estava equivocado).
Desencadeou-se um “procedimento investigatório” para saber se o aludido ministro não queria ficar mais um ano no Tribunal antes de se aposentar. Tudo isso apesar da ampla documentação oferecida pelo ministro à imprensa, comprovando o engano do registro. Um verdadeiro disparate!
E, por fim, há a chamada “politização indevida” da função. Que me perdoem os meus amigos promotores de Justiça, mas não vejo na Constituição brasileira autorização ética ou moral alguma para que promotores de Justiça exerçam cargos e funções, quer na Administração Pública, quer na iniciativa privada.
Como podem ser independentes e cumprir o seu nobre papel de fiscais da lei e promotores da defesa social se estão incrustados na Administração Pública federal, estadual e municipal?
E os abusos não vêm somente do setor público. Encontramos promotores de Justiça em toda parte, sobretudo em instituições públicas e privadas de ensino, bem como em cursinhos preparatórios. Se houvesse uma efetiva fiscalização de suas atividades, certamente os corregedores “descobririam” que a carga horária e a dedicação de seus colegas é incompatível com as nobres funções que exercem (ou deveriam exercer) na instituição.
Além disso, citem-se a presença de promotores de Justiça em vários tipos de colegiados: públicos, privados ou para-estatais, muitas vezes comprometendo a independência funcional apregoada na Constituição, em clara linha de impedimento com as funções exercidas como um todo pelo Ministério Público.
Como podem ter os mesmos direitos e ser equiparados à magistratura nacional se, ao contrário dos magistrados, podem exercer cargos e funções em toda a Administração Pública brasileira e mesmo em (várias) instituições de ensino por todo o Brasil?
Ao ingressarem nos quadros e fileiras do serviço público e no mercado privado (sobretudo “educacional”) nacional, passam a ser alvo fácil, senão co-autores, das mesmas mazelas que estão preordenados a fiscalizar. Alguém pode duvidar dessa afirmação elementar? Cremos que não.
Com inteira razão a crítica procedente de Wallace Paiva Martins Junior ao afirmar:
“A possibilidade da dedicação à atividade político-partidária por membros do Ministério Público que se lançam à disputa de mandatos políticos no Poder Executivo ou no Poder Legislativo ou a cessão ou afastamento para integração de membros do Ministério Público a cargos em comissão no Poder Executivo colabora para certa desconfiança na imparcialidade do órgão e de seus membros. Por isso, deve ser completamente extinta, porquanto tende a identificação do Ministério Público como órgão do governo e abastarda a instituição com a aproximação aos interesses político-partidários. Além de outros princípios, viola-se a premissa fundamental de dotação de prerrogativas reforçadas, semelhantes às da magistratura (vitaliciedade, irredutibilidade estipendial, inamovibilidade, poderes de requisição etc.), instituídas para a consecução das altas funções do Ministério Público. A posição especial do Ministério Público e, máxime, de seus membros como órgão independente no exercício direto ou na ignição ao controle jurídico da Administração Pública (artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal) torna incompossível. O exercício de atividade política ou governamental na esfera do Poder Executivo. As brechas do artigo 128, parágrafo 5º, inciso II, alínea ‘e’, da Constituição Federal e do artigo 29, parágrafo 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias são justificadas por interesses corporativos, que não podem se sobrepor ao interesse público primário de imparcialidade derivado da independência. Aliás, no aspecto subjetivo, tais brechas nem sempre renderam bons frutos corporativos ou institucionais. É, no mínimo, lamentável a brecha que o artigo 29, parágrafo 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias abre que, dentre outras exceções frutos de poderoso lobby, visa acomodar situações particulares, desnaturando em grande parte o perfil constitucional do Ministério Público inscrito nos dispositivos permanentes da Constituição Federal, para preservação do exercício de atividade político-partidária”.
O desfocado corporativismo domina a instituição, que não consegue fazer movimentar suas corregedorias em assuntos sensíveis. Há uma cultura equivocada da necessária “presença” dos agentes do Ministério Público em toda parte. Isso só desgasta e prejudica a função constitucional da instituição, comprometendo sua independência e contribuindo com o decréscimo de sua credibilidade.
De um lado, ninguém acredita seriamente que exista fiscalização e punição para aqueles que desbordem ou abusem de suas prerrogativas. De outro, o que fazer quando as próprias regras da instituição endossam comportamentos antiéticos, imorais e abusivos, como acabamos de demonstrar?
Desnecessário repetir a conhecida noção de que nem tudo o que é legal atende ao princípio da moralidade administrativa e seus standards mais elevados.
É hora de a sociedade brasileira, os movimentos sociais e também a imprensa não se deixarem enganar por jogadas usuais de marketing que escondem as verdadeiras mazelas e abusos daqueles que deveriam, com exclusividade, defender o interesse público e social, em regime de dedicação integral.
Como dizia Edmond Burke, “Quanto maior é o poder, tanto mais perigoso é o abuso”, sobretudo quando ele vem de quem deveria defender a sociedade.
Marcelo Figueiredo é advogado; consultor jurídico; professor associado de Direito Constitucional da PUC-SP; diretor reeleito da Faculdade de Direito (2005-2013); presidente de Associação Brasileira de Direito Constitucional; presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-SP; e membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2013
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