No Brasil, existem algumas leis que fazem menção ao instituto da organização criminosa — dentre elas a Lei 9.034/95, artigo 1º (recentemente revogada), e a Lei 9.613/98, artigo 1°, VII — conferindo um tratamento diferenciado, portanto, daquele que é dado ao crime de quadrilha ou bando previsto no Código Penal, artigo 288.
Todavia, não existia, até julho de 2012, na legislação nacional uma definição legal de organização criminosa, para fins de aplicação da lei penal.
Até então, vinha sendo utilizado o conceito de organização criminosa dado pela Convenção contra o Crime Organizado Transnacional de 2000, elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU). A qual o Brasil se filiou, e foi colocada em vigor no ordenamento jurídico nacional por meio do Decreto 5.015/2004. Que passou a ser denominada de Convenção de Palermo, e define organização criminosa da seguinte forma em seu artigo 2º: "Grupo criminoso organizado - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.”
O Supremo Tribunal Federal, contudo, em julgado proferido em junho de 2012 (relativo ao caso dos bispos da Igreja Renascer), proferido nos autos Habeas Corpus 96.007/SP, relatado pelo ministro Marco Aurélio, acatando a tese que vinha sendo sustentada por alguns estudiosos do tema, entendeu que não havia no sistema jurídico brasileiro uma lei nacional válida, que definisse o que se deveria considerar por organização criminosa. O que inviabilizaria a aplicação do conceito dado pela Convenção de Palermo, para a promoção de responsabilização de acusados das práticas de crimes em organização criminosa. Como se verifica da leitura de trechos do voto proferido pelo ministro Marco Aurélio:
“...Observem a denuncia formalizada pelo Ministério Publico. Aos pacientes e corréus foi imputada a pratica de lavagem de dinheiro, fazendo-se alusão ao inciso VII do artigo 1o da Lei no 9.613, de 3 de marco de 1998.
Para tanto, sob o angulo da organização criminosa, a peca primeira da ação penal remete ao fato de o Brasil, mediante o Decreto no 5.015, de 12 de marco de 2004, haver ratificado a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Eis a definição de crime organizado dela constante:
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Então, a partir da óptica de haver a definição desse crime mediante o acatamento a citada Convenção das Nações Unidas, diz-se compreendida a espécie na autorização normativa.
A visão mostra-se discrepante da premissa de não existir crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal – inciso XXXIX do artigo 5o da Carta Federal. Vale dizer que a concepção de crime, segundo o ordenamento jurídico constitucional brasileiro, pressupõe não só encontrar-se a tipologia prevista em norma legal, como também ter-se, em relação a ela, pena a alcançar aquele que o cometa.
...
Por isso, a melhor doutrina sustenta que, no Brasil, ainda não compõe a ordem jurídica previsão normativa suficiente a concluir-se pela existência do crime de organização criminosa. Vale frisar que, no rol exaustivo do artigo 1o da Lei no 9.613/98, não consta sequer menção ao de quadrilha, muito menos ao de estelionato, cuja base e a fraude. Em síntese, potencializa-se, a mais não poder, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado para pretender-se a persecução criminal no tocante a lavagem ou ocultação de bens sem ter-se o crime antecedente passível de vir a ser empolgado para tal fim.
Indago: qual o crime, como determina o inciso XXXIX do artigo 5o da Carta da Republica, cometido pelos acusados se, quanto a organização criminosa, a norma faz-se incompleta, não surtindo efeitos jurídicos sob o angulo do que requer a cabeça do artigo 1o da mencionada lei, ou seja, o cometimento de um crime para chegar-se a formulação de denúncia considerada pratica, esta sim, no que completa, com os elementos próprios a tê-la como criminosa, em termos de elementos de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores?
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Não é demasia salientar que, mesmo versasse a Convenção as balizas referentes a pena, não se poderia, repito, sem lei em sentido formal e material como exigido pela Constituição Federal, cogitar-se de tipologia a ser observada no Brasil. A introdução da Convenção ocorreu por meio de simples decreto!
A não se entender dessa forma, o que previsto no inciso em comento passa a ser figura totalmente aberta, esvaziando o caráter exaustivo do rol das praticas que, fazendo surgir em patrimônio um dos bens mencionados, conduzem, estas sim, porque glosadas no campo penal, a configuração da lavagem definida. Toda e qualquer pratica poderá ser tomada como a configurar crime, bastando que se tenha o que definido na Convenção como organização criminosa e que se aproxima de quadrilha nela não prevista.
Concedo a ordem para trancar a ação penal...”
Por mais que esta decisão do STF tenha sido dada num caso concreto (possuindo eficácia apenasinter partes), é certo que terá efeito multiplicador. Pois, certamente, outras decisões judiciais passarão a adotar esta mesma linha de raciocínio, rendendo-se ao entendimento da Suprema Corte.
Para preencher esta lacuna (e diante da decisão proferida pelo STF acima mencionada), em julho de 2012 foi editada a Lei 12.694/2012. Que criou regras para o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição, de crimes praticados por organizações criminosas. Trazendo, inclusive, uma definição legal de organização criminosa, nos seguintes dizeres:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.
Todavia, recentemente, em agosto de 2013, foi editada nova legislação sobre organizações criminosas, delineando os meios de investigação para obtenção de provas. É a Lei 12.850/2013, que trouxe a seguinte definição:
Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.
§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
...
Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
Legislação que trouxe diversos avanços pois, dentre outros aspectos, regulamentou os procedimentos dos institutos da “colaboração premiada”, “ação controlada” e da “infiltração”, objeto da análise deste trabalho.
A novel normatização (Lei 12.850/2013) criou, também, um problema de aplicação. Porque trouxe definição de organização criminosa em certos aspectos destoante daquela então positivada por intermédio da Lei 12.694/2012. Notadamente no que tange ao número de integrantes necessários para caracterizar o clã criminoso.
Esta antinomia existente entre a Lei 12.850/2013, artigo 1º (que exige quatro integrantes) e a Lei 12.694/2012, artigo 2º (que exige três integrantes), certamente será solucionada sem maiores transtornos pela doutrina e jurisprudência. Tudo leva a crer, com esteio no primado cronológico de superação das antinomias aparentes (considerando que nem o da especialidade, e nem o hierárquico seriam aplicáveis neste contexto).
Pelo qual a lei posterior, em regra, revoga (ou derroga) a anterior com ela incompatível, quando tratarem da mesma matéria (artigo 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-lei 4.657/42).
Mas esta é uma temática que escapa ao escopo e alcance deste breve estudo. Que focalizará na questão sobre a infiltração de agentes em organizações criminosas.
Infiltração de agentes
A infiltração de agentes em organizações criminosas, agora, conta com expressa regulamentação. Que, apesar de não ser exaustiva (porquanto inevitavelmente será alvo de regulamentação interna corporis do aparato policial), positivou importantes marcos regulatórios ao emprego deste importante mecanismo de investigação e produção probatória.
Como não poderia ser de outra maneira, a autorização para a incursão do agente policial nesta célula criminosa, deverá ser precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites (artigo 10, caput).
É, à toda evidência, somente podendo se admitir que se trate de infiltração realizada por membro integrante da corporação policial.
O que torna defeso, ilustrativamente, que se utilize na infiltração, integrantes da própria organização criminosa. Que, sequiosos de colaborar com a justiça para a obtenção de benesses legais, passíveis de atenuar os castigos legais que lhe seriam impostos em caso de condenação (se estiverem sendo alvo de persecução penal), estariam dispostos a servirem de agentes infiltrados para colaborar com o aprofundamento da investigação.
O questionamento que surgirá, provavelmente, é a respeito da possibilidade de agentes de inteligência de órgãos como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), também poderem se valer deste mecanismo da infiltração, na coleta de informação para assessorar a tomada de decisões pelos organismos de assessoria da Presidência da República. Mas que também é assunto que foge ao propósito deste texto.
Enquadramento penal das infrações praticadas pelos agentes infiltrados
Voltando ao tema central, tem-se a questão referente sobre qual o enquadramento penal a ser feito, na hipótese do agente infiltrado vir a praticar ilícitos penais, quando no desempenho de suas atividades de obtenção de informações na condição de infiltrado.
Mesmo antes da edição da novel Lei 12.850/2013, o pensamento predominante era o de que, no que tange ao ilícito de formação de quadrilha ou bando, ou agora, o de organização criminosa, incidiria uma causa supralegal de exclusão da antijuridicidade. Que, na ótica de Fernando Galvão, in Direito Penal — Parte Geral, 5ª edição, 2013, Saraiva, página 396, pode ser assim conceituada:
“...9.5 Causas Supralegais de Exclusão da Ilicitude
O Código Penal em vigor não contém previsão para outras causas excludentes de ilicitude. Isso não significa que haja problemas para equacionar as questões em que não ocorra uma ilicitude material. Primeiro porque, com base nas fórmulas abrangentes do estrito cumprimento de um dever legal e do exercício regular de um direito, pode-se resolver a grande maioria das questões em que não se materialize o desvalor da conduta. Além disso, a melhor compreensão sobre o conteúdo material da ilicitude levou os penalistas nacionais a reconhecerem que as causas de justificação não se limitam aos casos expressamente previstos na lei, admitindo-se a existência de causas supralegais de exclusão da ilicitude...”
E que não violariam o primado da estrita legalidade penal (CF, artigo 5º, XXXIX, e CP, artigo 1º). Considerando que versam sobre redução do poder punitivo estatal que, dentro de certas balizas, irretorquivelmente são congruentes com o sistema jurídico.
Equivale a dizer, por razões óbvias, não poderia o agente infiltrado na estrutura do aparato criminoso, ser responsabilizado exatamente por estes crimes (mesmo sem que haja expressa previsão legal a respeito dispondo a este respeito). Cuja infiltração era destinada a coletar provas para promover seu desmantelamento. Seria unir o disparate ao absurdo pretender-se uma tal sorte de enquadramento penal.
A novidade, no caso, veio insculpida na Lei 12.850/2013, artigo 13, parágrafo único. Ao ter positivado aquilo que já era preconizado por boa parte dos estudiosos da matéria, que sustentavam serem os atos delituosos praticados na condição de agente infiltrado, acobertados pela causa excludente da culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa.
Artigo 13. O agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados.
Parágrafo único. Não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.
Que, nas linhas do magistério de André Estefam e Vitor Eduardo Rios Golçalvez, na obra Direito Penal (Parte Geral, Ed Saraiva 2012, paginas 413 e 428), pode ser assim compreendida:
“De acordo com o Código Penal, a culpabilidade compõe-se dos seguintes elementos:
- imputabilidade;
- potencial consciência da ilicitude;
- exigibilidade de conduta diversa.
...
18.3.3. Exigibilidade de outra conduta
...
Para dizer que alguém praticou uma conduta reprovável, é preciso que se possa exigir dessa pessoa, na situação em que ela se encontrava, uma conduta diversa. Reinhard Frank foi pioneiro na sistematização desse critério, inserindo-o dentro da culpabilidade. O autor estabeleceu como premissa fundamental a de que só se pode impor pena ao autor de um injusto (fato típico e antijurídico) quando se demonstrar ter sido seu comportamento reprovável. Para tanto, é necessário que dele se possa exigir conduta diversa, ou seja, que na situação em que o fato foi cometido, seja lícito concluir que o agente possuía uma alternativa válida de conduta. Se, por outro lado, verificar-se que as condições exteriores não lhe davam outra saída senão agir daquela maneira, seu ato não poderá ser tido como censurável. A ausência de censurabilidade acarreta a falta de culpabilidade e, desta forma, isenta-o de pena...”
Sendo que, ainda no diapasão da Lei 12.850/2013, artigo 13, caput (acima reproduzido), se porventura o agente infiltrado praticar atos em flagrante desproporcionalidade com a finalidade da investigação, poderá ser responsabilizados por estes excessos. Respondendo pelos crimes perpetrados à margem do permissivo que lhe foi conferido quando da autorização para infiltrar-se no esquema criminoso.
Em síntese, o agente infiltrado: a) não responderá pelo crime de integrar organização criminosa, com esteio na causa supralegal de exclusão de ilicitude; b) não responderá pelos crimes em que ficar constatado ser inexigível conduta diversa, por ser causa que afasta a culpabilidade; e c) poderá responder criminalmente pelos atos delituosos, que sejam considerados em excesso e não guardem proporcionalidade com a finalidade da persecução investigativa.
Não há dúvida que a Lei 12.850/2013 trouxe importantíssimos avanços na legislação penal. Regulamentando institutos que estavam pendentes de normatização. Fortalecendo as instituições estatais, que tem como função promover a investigação e o combate a organizações criminosas. Provendo-as de eficazes ferramentas legais, destinadas a coleta de informações que possam vir a contribuir para a desarticulação destes perigosos grupos criminosos.
Como qualquer preceptivo legal, entretanto, sua real eficácia ficará dependente de como será aplicada em situações concretas.
A infiltração de agentes do estado nestas células criminosas tornou-se imprescindível no mundo atual. Dado o alto grau de sofisticação que estes esquemas de delinquentes vem assumindo na atualidade.
Cabe, agora, ao Poder Público, fazer o uso correto e eficaz deste relevante mecanismo investigativo.
Sérgio de Oliveira Netto é procurador federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2013
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