A mulher é sem dúvida o principal foco de proteção contra a violência doméstica e familiar (artigos 1º, 3º e 5º da Lei Maria da Penha).
Segundo o Balanço Semestral de janeiro a julho de 2012 do Ligue 180 da Central de Atendimento à Mulher,
serviço vinculado à Secretaria de Políticas para as mulheres da Presidência da República, o companheiro, o marido, o namorado, após o término dos relacionamentos, são os principais agressores, 89,17%, e tais violências costumam surgir em 42,19% dos casos após 10 anos do início do convívio íntimo.
Inclusive, outro dado que chama atenção deste balanço é que em 66,8% desses casos, as crianças, filhos do agressor ou da vítima, presenciam tais violências!
É que a violência doméstica e familiar independente do sexo da vítima ou do agressor, e quando praticada contra pessoa que não consegue ou não pode se defender ante sua vulnerabilidade, seja social, psicológica, de saúde ou econômica, merece também o amparo do Estado, inclusive quanto à assistência pública e as medidas protetivas de urgências previstas em lei.
E apenas para elencar outras hipóteses excepcionais, cito:
a) o filho ou o enteado que é agredido pelo pai ou padrasto — que também agride a companheira e a filha;
b) em relação homoafetiva, onde um exerce ostensivamente o papel feminino, interpretação esta que encontra amparo expresso no parágrafo único do artigo 5º da LMP — para ser vítima independe de qualquer orientação sexual;
c) o homem com algum tipo de deficiência física ou mental, ou mesmo dependente químico;
d) o homem idoso vítima de violência de sua esposa ou companheira;
e) ou ainda agressões recíprocas entre um homem e uma mulher, no ambiente doméstico e familiar;
Após o deferimento das Medidas Protetivas Urgentes, ou em alguns casos antes mesmo desta providência, é comum ser o feito remetido à equipe multidisciplinar que atua junto a unidade, formada por psicólogos e assistentes sociais, para fins de acompanhamento e avaliação da violência alegada.
Além de contar com tais profissionais, as varas criadas por esta lei também são dotadas de operadores do direito especializados nesse combate, os quais tem à disposição as já citadas Medidas Protetivas Urgentes e a competência mista cível e criminal, como veremos.
Inclusive, é interessante relembrar o disposto no parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, quando não restringe a proteção às mulheres, mas a estende a todos que estejam relacionados à referida violência.
Por esses fundamentos, entendo possível ampliar a competência de varas como esta para todos os casos de violência doméstica e familiar contra a pessoa, quando em situação de vulnerabilidade doméstica e familiar, nos termos da LMP, excluídas as competências previstas na Constituição da República e nas Constituições dos Estados em favor de Tribunais, por prerrogativa de foro, bem como as competências da Justiça Eleitoral, Militar, do Trabalho e Federal, além do Tribunal do Júri.
Da competência cível dos juizados da violência doméstica e familiar contra a mulher
A competência cível desses juizados está presente comumente quando da análise processual dos pedidos de Medidas Protetivas Urgentes sejam as que obrigam o agressor ou as que assistam à ofendida.
E como se verá adiante, as Medidas Protetivas Urgentes visam obstar ou coibir a violência doméstica e familiar praticadas contra a mulheres, independentemente do início ou destino de possíveis ações penais!
Dentre essas medidas não penais, é possível o juiz conhecer, até mesmo de ofício (artigo 19), e deferir tutelas cautelares não penais além das já conhecidas afastamento do agressor do lar ou local de convivência com a ofendida e proibição de aproximação da ofendida, ou de seus familiares, como também a proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; e prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Porém, não se pode perder de vista que a competência cível desses juizados é restritas às hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher, ou seja, o juiz só pode delas conhecer quando visar coibir ou prevenir tais violências.
Neste sentido inclusive é o teor do Enunciado 3 do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – FONAVID, criado em 2009, por ocasião da III Jornada Maria da Penha, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça.
E como consequência dessa interpretação legal, e como se verá também a seguir, a competência cível independe da criminal, não se sustentando assim o teor do Enunciado 5 do FONAVID, que condiciona tal competência a existência de notícia crime ou representação criminal da vítima.
Tutela coletiva na Lei Maria da Penha
E ainda neste tópico, não se pode deixar de registrar que o artigo 37 da LMP permite o conhecimento de demandas coletivas para a defesa dos interesses e direitos transindividuais, a serem propostas concorrentemente pelos legitimados extraordinários, Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano.
Essas demandas podem ser facilmente visualizadas quando se observam as diretrizes de política pública no seu enfrentamento e previstas no artigo 8º daquela lei.
A natureza jurídica de cautelar cível satisfativa das medidas protetivas de urgência
A LMP as previu nos artigos 22 a 24, ora para obrigar o agressor ou para assistir à ofendida, quando da prática ou da iminência de violência doméstica e familiar.
Dentre as que obrigam o agressor, as mais usuais são: a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição aproximação e de manter contato com a ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor.
Já as mais comuns que assistem à ofendida são: a recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor e afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; e separação de corpos.
Há ainda a possibilidade de o juiz deferir visando a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher.
Ocorre que embora a lei as tenha previsto, não estipulou um rito processual próprio. E para integrar esta lacuna, alguns doutrinadores, como Fredie Didier Jr. e Rafael Oliveira, têm optado por adaptar tais pedidos ao processo cautelar cível, inclusive prevendo prazo de cinco dias para a defesa do agressor, hipóteses não previstas na lei.
Para os autores as Medidas Protetivas Urgentes são as medidas provisionais do artigo 888 do Código de Processo Civil ou comumente chamadas cautelares satisfativas. (Ver artigo intituladoAspectos Processuais Civis da Lei Maria da Penha — Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, publicado na Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões numero 4 — Jun/Jul de 2008).
A opção pelo rito cautelar cível se deu em razão de o procedimento cautelar penal — previsto no Código de Processo Penal — não só necessitar de uma ação penal respectiva, como também não ser procedimento autônomo, mas sim incidente dentro do Inquérito Policial ou da Ação Penal, visando a aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (artigo 282 e seguintes do CPP).
A adoção pelo rito cível ainda ganha reforço quando o artigo 13 da LMP permite expressamente a aplicação subsidiária das normas do CPC. E também, no rito cautelar penal não se prevê prazo para defesa, já que o investigado ou o denunciado da ação penal se defende quando citado, nos termos do artigo 396 do CPP.
Optando pelo procedimento cível resolve-se:
a) o agressor passa a ter o prazo de cinco dias para apresentar uma defesa escrita, na forma do artigo 802 do CPC, podendo inclusive produzir provas em seu favor;
b) continuidade da análise da Medidas Protetivas Urgentes, independentemente de a vítima representar criminalmente contra seu agressor, ou independentemente da interpretação dada pelo Ministério Público ao fato ser ou não criminoso;
c) desnecessidade de fixação de prazo para vigência dessas medidas protetivas;
d) possibilidade de arquivamento da MPU por desinteresse da vítima, seja quando expressamente intimada ou quando não mais encontrada no endereço por ela antes indicado, na forma do parágrafo único do artigo 238 do CPC;
e) possibilidade de utilização da fase de cumprimento de sentença cível, para as hipóteses de descumprimento das Medidas Protetivas Urgentes, mesmo ausente a ação penal.
No geral, as vítimas não optam pelo início ou continuidade dos procedimentos penais que visam a condenação, normalmente pretendem é se verem livres das agressões ou violências. Assim, é comum requererem Medidas Protetivas Urgentes nas delegacias sem representar criminalmente.
Interpretar como medidas independentes, não se impõe um julgamento de prejudicialidade de uma para com a outra.
Por tais fundamentos, entendo que o Enunciado 12 do FONAVID (Em caso de absolvição do réu ou de extinção da punibilidade do agressor, cessará o interesse de agir, em sede de medidas protetivas de urgência), deveria ser revisto seja para cancela-lo ou mudar sua redação para o sentido inverso.
Desnecessidade de fixação de prazo para vigência de MPU
A fixação de prazo judicial para vigência das Medidas Protetivas Urgentes, como em alguns casos, seis meses, em analogia aos prazos decadenciais de que dispõe a vítima para os crimes sujeitos à queixa ou à representação previstos no artigo 38 do CPP, a contar da data do último ato de violência, importa em nova sujeição da mulher à risco e à vulnerabilidade social.
Ora, após aquele prazo, o agressor que se aproxima da mulher ou retorna ao lar conjugal, não estaria mais descumprindo a ordem judicial de distanciamento e nem estaria sujeito à prisão cautelar prevista no inciso I do artigo 313 do CPP.
Ao meu sentir, a melhor solução jurídica é a não fixação de prazo às Medidas Protetivas Urgentes.
Após o julgamento por sentença cível do mérito do pedido de MPU, a eficácia da coisa julgada se protrairá no tempo indefinidamente, à semelhança do que ocorre com as decisões proferidas em ações de alimentos.
Inclusive nessas ações embora o artigo 15 da Lei 5.478/1968 afirme não haver transito em julgado e pode a qualquer tempo ser revista em face da modificação da situação financeira dos interessados, a melhor doutrina aqui representada pela Professora Maria Berenice Dias afirma que a coisa julgada é limitada aos fatos, à causa de pedir e ao pedido lá deduzido.
Ora, após o trânsito em julgado, as partes de uma demanda de alimentos não podem voltar à justiça pedindo a revisão do julgado sob os mesmos fatos antes afirmados, pois sobre eles há coisa julgada material!
Caberia essencialmente ao agressor, após o trânsito em julgado, e para não se impingir de descumpridor das medidas judiciais, pedir, por simples petição nos autos, com anuência expressa de sua vítima, o cancelamento daquelas medidas, à semelhança do pedido de restabelecimento da sociedade conjugal nas antigas ações de separações judiciais (artigo 46 da Lei, 6.515/1977).
Desinteresse da vítima no apurar a violência
Outra dificuldade encontrada na lide diária dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher é o desinteresse das vítimas na continuidade das demandas judiciais, em alguns casos.
Embora a LMP preveja no artigo 16 que a desistência à representação ou à queixa antes ofertada só seja possível na presença do Ministério Público e do juiz natural, o que se vê que é que as vítimas sequer a ela comparecem.
Não comparecendo à referida audiência, reputa-se ineficaz possível demonstração de desinteresse na representação antes ofertada, cabendo ao Ministério Público a continuidade da ação penal condicionada.
No entanto, a sequência dessas demandas penais, oferta e recebimento de denúncia e designação de audiência de instrução e julgamento, mostram-se muitas vezes improdutivas sem a presença da vítima, ou quando comparecem, o efetivo interesse no resultado final é quase inexistente.
Quando assim ocorre, e analisando caso a caso, entendo possa não mais haver justa causa à persecução penal da ação penal, já que a produção de prova da autoria (inciso III do artigo 395 do CPP) estaria seriamente prejudicada, sem os detalhes da própria vítima, muitas vezes a única a estar presente por ocasião da violência doméstica e familiar.
Por tais fundamentos, sustento a revisão do Enunciado 19 do FONAVID (O não-comparecimento da vítima à audiência prevista no artigo 16 da Lei 11.340/06 tem como consequência o prosseguimento do feito).
Quando o desinteresse ou a ausência da vítima se dá nos autos de medida protetiva de urgência, reputo válida a comunicação dirigida a seu endereço por ela indicado, na forma do parágrafo único do artigo 238 do CPC, e após sua intimação para impulsionar o feito, silente e certificado, arquivo a demanda, por ausência superveniente de interesse processual, na forma do inciso VI do artigo 267 do CPC.
Neste sentido, sigo a orientação 17 dos Enunciados do FONAVID (O parágrafo único do artigo 238 do CPC é aplicável ao incidente de concessão de medida protetiva).
Prévia oitiva do suposto agressor na delegacia
O fato de não ouvir o agressor previamente na delegacia, e a ausência de previsão na lei de sua defesa, traz uma absurda insegurança jurídica, ante a unilateralidade das informações trazidas pela suposta vítima.
Há ainda o risco do desvio de finalidade da MPU de afastamento do lar, por exemplo, como alternativa ao insucesso de idêntica medida nas varas de família, quando da disputa de patrimônio, após o término de relacionamento.
Assim, acredito que não só a lei precisa ser nesta parte atualizada, como desde logo, adoto providência de determinar oitiva prévia dos supostos agressores para fins de melhor análise do pedido de medida protetiva de urgência, salvo quando a questão traz em si elementos suficientes de convicção sumária ou risco de ineficácia de um provimento futuro.
Da eficácia contra todos e do efeito vinculante da decisão do STF sobre a ação penal do crime de lesão do parágrafo 9 do artigo 129 do Código Penal
Em 09.02.2012, o STF julgando o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4.424-DF, e dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei 11.340/2006, assentou a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico.
Embora ainda pendente de publicação do acórdão deste julgado, o certo é que as decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, na forma do parágrafo 2º do artigo 102 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, e parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868/1999.
Embora o artigo 187 do Regime Interno do STF disponha que tais efeitos só surgiriam após a publicação do acórdão, observa-se que nesta parte o regimento carece de atualidade com o texto constitucional.
Assim, aquela decisão do STF já tem força contra todos e efeito vinculante desde 09.02.2012.
Aplicação da Lei 9.099/95 à contravenção de vias de fato
A expressa omissão no artigo 41 da LMP permite que às contravenções de vias de fato se aplique os institutos despenalizantes da transação penal e da suspensão condicional do processo da Lei 9.099/1995, já que o legislador não permite aplicar esta aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, e não às contravenções.
Neste sentido é o teor do Enunciado 8 do FONAVID (O artigo 41 da Lei 11.340/2006 não se aplica às contravenções penais).