O tribunal do júri configura um dos mais antigos sistemas de julgamento de que se tem conhecimento. Já encontrado no processo penal grego e romano, foi retomado durante a formação do direito processual inglês, no século XIII, resgatando a ideia julgamento popular. O procedimento do tribunal do júri possui formas bastante peculiares, que o faz ser ‘especial’, mas seu tratamento legislativo está inserido entre os procedimentos comuns.
O júri está associado à noção de compartilhamento, de democratização, da atividade jurisdicional. Básica e sucintamente explicando, o júri é formado pelo juiz de direito, que preside o julgamento, e sete jurados sorteados, os quais compõem o conselho de sentença. Os jurados são representantes do povo que enfrentam as questões de fato, ao passo que o juiz enfrenta as questões de direito.
Discussões acaloradas a respeito do procedimento estão relacionadas, principalmente, à pertinência, em um regime democrático, de jurados leigos julgarem os crimes. No caso brasileiro, tratam-se dos crimes mais apenados: os dolosos contra a vida – quais sejam homicídio, aborto, infanticídio e indução ao suicídio.
Essa reflexão foi suscitada no mês de Novembro de 2010, quando a Corte Europeia de Direitos Humanos discutiu a problemática das decisões tomadas por leigos e a necessidade do acusado entender claramente os motivos que o levaram à condenação.
A Corte não decretou que os julgamentos feitos pelo povo, em si, constituem violação a direitos fundamentais, mas estabeleceu certas garantias (mínimas) que devem ser respeitadas pelos Estados europeus para que as decisões sejam justas, conforme prevê a Convenção Europeia de Direitos Humanos. O tribunal apontou procedimentos que garantem decisões não-arbitrárias, ainda que tomadas por leigos.
A partir de então, as decisões oriundas de tribunais do júri deverão permitir ao condenado a completa compreensão das razões da sentença. Não há como exigir que os jurados, que não contam com formação jurídica, fundamentem suas decisões. Portanto, caberá ao juiz a responsabilidade de fazer com que o veredicto seja o mais claro possível: através das questões formuladas para o júri, que devem ser precisas o bastante para serem respondidas com “sim” ou “não”, o juiz auxiliará no esclarecimento dos motivos que levaram o grupo ao veredicto. Ele não poderá mais se limitar a fazer perguntas como “x matou y?” ou “ele premeditou o crime?”.
Na hipótese de haver julgamento concomitante de vários acusados, as questões devem ser orientadas, o máximo possível, para cada um dos acusados; em outras palavras, as perguntas não devem se referir ao coletivo, devendo o júri respondê-las para cada um dos indivíduos.
Já são parte do procedimento perguntas precisas e orientações dadas pelo juiz-presidente do tribunal do júri aos jurados, para que estes entendam as questões legais envolvidas no caso, de forma a assegurar um julgamento justo ao acusado. Mesmo assim, há uma série de contestações do meio jurídico acerca da pertinência ou não do júri no ordenamento, seja em âmbito nacional ou internacional.
Entre os argumentos a favor da manutenção do procedimento no sistema de justiça criminal brasileiro estão: (i) é um tribunal de conotação democrática, em que os jurados, teoricamente, estão mais em contato com os contextos em julgamento que os juízes togados, (ii) considerações morais, éticas, psicológicas e econômicas, que facilmente orientam a decisão dos jurados, dosam eventuais injustiças da aplicação “pura e fria” da lei, (iii) a presunção de que a decisão dos jurados coincide com a opinião popular e por esta pode ser mais bem assimilada.
Em prol dos que se manifestam contrários à permanência do júri, pode-se citar: (i) juízes togados passam por um longo período de preparo profissional para que possam julgar com imparcialidade e, como cidadãos, participam da sociedade e buscam compreendê-la como tal, (ii) nos debates do júri podem haver argumentos emocionais que facilmente iludam os jurados e interfiram no senso de imparcialidade, (iii) a maioria dos jurados não expressa a opinião popular, mas a classe média da qual geralmente provêm.
O poder de decidir se um cidadão é um criminoso e se deve permanecer atrás das grades ou não é algo que o Estado faz há muito tempo, como anteriormente dito. Para aqueles que defendem o júri, trata-se de um ponto alto da democracia. Na Europa, países considerados mais desenvolvidos e dotados de sistemas democráticos amplamente aplaudidos mundo afora mantêm o júri para decidir determinados crimes, como o homicídio. É o caso da Áustria, Bélgica, da Espanha, do Reino Unido, da Noruega e da Suíça.
Em outro grupo de países europeus, não há julgamentos feitos única e exclusivamente por leigos, existe a composição de um tribunal misto, com cidadãos leigos e juízes concursados, que, juntos, chegam a um veredicto. Entre estes se destacam a Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Portugal e o pequeno Principado de Mônaco, além da Suíça e Noruega, que trabalham com júri e também com tribunais mistos.
Dos Estados que integram a Europa, em apenas 14 não existe nenhuma espécie de julgamento com a participação da sociedade.
Ao se debruçar sobre as questões do júri e dos direitos fundamentais do homem, a Corte Europeia considerou que a existência ou não de julgamentos populares reflete a história, tradição e cultura de cada Estado e que não é de sua alçada padronizar isso. Caber-lhe-ia apenas observar se as escolhas dos países respeitam os preceitos da convenção assinada por todos.
Da mesma forma, é igualmente importante haver no Brasil reflexão sobre o papel do tribunal do júri nas decisões, se o fato de pessoas leigas decidirem o destino de um indivíduo resulta em um julgamento justo, se o modo como a decisão é tomada fere, ou não, o direito do condenado de entender plenamente a sentença.
Aqui a competência do tribunal do júri limita-se aos julgamentos de crimes dolosos contra a vida. E são geralmente esses que estão sob os holofotes da imprensa, tornando-se, assim, um verdadeiro espetáculo, como foi o caso da menina caída da janela do apartamento, ou o da moça que planejou a morte dos pais em sua própria casa, ou o da ex-namorada de um jogador de futebol que está desaparecida (e supostamente morta), ou tantos outros que entram e saem de cena...
No contexto brasileiro, seria interessante repensar, tal como foi feito na Europa, a necessidade de as decisões serem minimamente fundamentadas, de modo que o acusado possa compreender quais os motivos que levaram os jurados a optarem ou pela condenação, ou pela absolvição. É importante discutir se essas decisões são tomadas com base nas provas produzidas, nos depoimentos e nos debates ou se os jurados deixam-se levar pela dramaticidade condenatória posta pela imprensa.
(EAH). IBCCRIM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário