Notícias envolvendo crimes sempre atraíram a atenção da população. Com a evolução tecnológica dos meios de difusão de informações, o acesso a essas notícias melhorou em qualidade e velocidade, de modo que, hoje, é possível acompanhar um caso praticamente em tempo real.
É especialmente o fascínio pelo crime e pelo criminoso que constitui a principal força motriz da mídia. Como resultado, tem-se uma enxurrada de reportagens relatando detalhadamente casos diversos – desde crimes contra o patrimônio, que são mais corriqueiros, a homicídios de grande repercussão. Crimes financeiros e, em tempos como o recente, crimes eleitorais também estão sob os holofotes.
Esse constante monitoramento de casos delituosos interfere, inegavelmente, na formação de valores da sociedade, que, por sua vez, influenciam não só as opiniões, mas também as condutas humanas. É claro que o efeito não é privilégio dos crimes; indispensável seria dizer que “qualquer informação sobre um determinado tema concorre para disseminá-lo”.(1) Mas, como já dito, as práticas delituosas e as grandes tragédias tornam-se uma predileção da mídia, dada a grande comoção pública gerada.
No atual contexto democrático em que vivemos, a imprensa atua como instrumento de informação. O que se percebe, por meio de uma observação um pouco mais crítica da participação midiática, é o tratamento demasiado escandaloso em relação aos crimes noticiados. Há, hoje, uma obsessão da imprensa em esclarecer a “verdade” – que pode ser tranquilamente manipulada se alguns dados forem silenciados ou não corretamente focados – de modo que os fatos são insistentemente reproduzidos, o que faz as histórias ganharem “contornos fantásticos e exacerbados”, como bem explica Ana Elisa Liberatore S. Bechara.(2)
Além de informar os fatos, que é propriamente seu ofício, a mídia acaba por colaborar para a construção de estereótipos sociais e de pré-conceitos, entre os quais se encontra a figura do criminoso. Sob a bandeira da liberdade de expressão e do propalado “direito do povo saber”, os meios de comunicação vasculham, repassam e divulgam todo tipo de informação obtida de maneira deveras irresponsável, transformando o crime em um grande espetáculo.
Diz-se irresponsável uma vez que, não raro, as convicções pessoais são influenciadas em desfavor daquele que é acusado e a famosa presunção de inocência é ignorada. Então, há a distinção maniqueísta entre o “homem de bem”, que deve ser protegido, e o “bandido”, que merece a punição e a segregação social.(3)
Como Ana Lúcia M. Vieira(4) aponta, “o suspeito de ter praticado um delito é exposto à curiosidade pública a qual, estimulada pelos meios de comunicação, no clamor dos acontecimentos, acaba por condená-lo”. E a intensa exposição do suposto criminoso diante das câmeras implica uma desnecessária diminuição social e moral, que não é restrita à fase das investigações, mas estendida à execução da pena dependendo do caso. Não há um “direito ao esquecimento” por parte das pessoas presas, principalmente se foram alvo da ampla e irrestrita publicidade enquanto na persecução penal.
De todo esse cenário também emergem sentimentos intensos e ocultos da sociedade, tais como a agressividade, os preconceitos sociais, raciais e morais e, de forma bastante significante, o medo. Dependendo da abordagem adotada pelos meios de comunicação sobre os problemas da violência e da criminalidade, são criadas, na mentalidade dos cidadãos, percepções de perigo, imaginários coletivos que geram as denominadas “sociedades do medo”.(5)
“O estado subjetivo de insegurança acaba por influenciar, inexoravelmente, o funcionamento da justiça criminal e intervir na produção legislativa, através da exploração da variável ‘medo’”,(6) observa Sérgio Salomão Shecaira.
Tanto a existência da sociedade do medo como a construção (muitas vezes preconceituosa) da imagem do criminoso que é abraçada pela sociedade(7) criam um sentimento generalizado de necessidade de punição do suposto infrator, de que este merece o encarceramento, pouco importando as degradantes situações a que será submetido.(8) Daí o descaso da maioria com o quadro carcerário atual e o aumento da utilização de medidas de proteção pessoal no lugar de políticas públicas que visem à redução da criminalidade.
Esses são apenas exemplos dos efeitos da ação midiática no consciente coletivo no que tange a alguns aspectos da criminalidade. Não se afirma com isso que a imprensa deveria ter sua liberdade de expressão suprimida ou reduzida, mas aponta-se uma realidade que é criada e recriada todos os dias exatamente a partir daquilo que deveria ser apenas seu espelhamento, ou seja, apenas a transmissão dos fatos.
Importante ressaltar que, diante de sucessivos períodos da história brasileira, notadamente autoritários, em que a imprensa foi calada por força de interesses que só podiam ser defendidos com o obscurantismo, é natural que a liberdade de expressão e de imprensa seja defendida. Mas o que se verifica nos dias atuais é que a falta de limites termina por ferir certos direitos que são constitucionalmente assegurados (como a intimidade, a honra, a presunção de inocência, entre outros).
A proposta de solução do problema não pode ser, obviamente, a criação de obstáculos legais para a publicação de notícias ou qualquer cerceamento da liberdade de expressão, tampouco a criminalização da conduta, haja vista a saturação do direito penal nesse sentido e o fato de que o sistema jurídico-penal deve ser sempre a derradeira alternativa de controle social.
A esse respeito, está pronto novo projeto que cria marco regulatório na comunicação eletrônica. Contudo, a decisão de enviá-lo ou não ao Congresso ficará a cargo da presidente eleita. Até agora, sabe-se que os principais pontos a serem regulados envolvem internet, legislação geral para comunicação pública, priorização de conteúdo nacional pelas emissoras de televisão e regularização da área de comunicação no país. As questões mais controvertidas dizem respeito à criação de uma agência reguladora única para a comunicação social e à redefinição dos serviços – um serviço para redes, em que estariam incluídos todos os provedores de telecomunicações, um serviço de radiodifusão e um serviço de comunicação social.
Se aprovada, a nova proposta substituirá o Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.117/62), que, atualmente, só regula o setor de radiodifusão – transmissão de sons e imagens – e está consideravelmente defasado em relação às novas mídias. Importante ressaltar que boa parte dele já foi revogada com a edição da Lei Geral de Telecomunicações (nº 9.472/97), que reestruturou o ambiente regulatório do setor, abriu as telecomunicações brasileiras para a competição e criou a “Anatel” (Agência Nacional de Telecomunicações), a qual assumiu a responsabilidade pela outorga, regulamentação e fiscalização de matérias referentes às telecomunicações brasileiras, competências que, até então, eram do Ministério das Comunicações.
A proposta para a nova lei de comunicação tem gerado demasiada desconfiança entre os profissionais da área de comunicação, que enxergam a possibilidade de intervenções e alterações no conteúdo jornalístico pela agência reguladora e acreditam que esse controle social da mídia se converteria facilmente em censura à livre expressão. Se esses temores se confirmarem e o projeto se tornar lei, teremos um grande retrocesso.
Em uma sociedade democrática como a atual, é inadmissível a retomada de um ato característico de tempos sombrios como a Ditadura. Mas também é indiscutível a necessidade de rever e repensar a influência dos discursos e das notícias, reproduzidos pelos meios de comunicação, na formação da sociedade do medo e a maneira como a maioria passa a enxergar a criminalidade.
NOTAS
(1) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e crime. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão. Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva: criminalista do século. São Paulo: Método, 2001, p. 357.
(2) BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. “Caso Isabella”: violência, mídia e direito penal de emergência. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 16, n. 186, maio 2008, p.16-17.
(3) Percebe-se claramente essa interferência na formação de valores da sociedade ao observa-se o frenesi coletivo gerado pelo filme “Tropa de Elite”. A bem sucedida produção foi, equivocadamente, aplaudida e elogiada pelas cenas de violência em que a corporação, nas palavras do Capitão Nascimento, “esculachava os bandidos”. A figura de justiceiro incorruptível de que se vestiu o personagem de Wagner Moura foi ao encontro das aspirações do público, entre elas a diminuição da violência urbana através do aumento da repressão, ainda que isso implicasse um fechar de olhos para os direitos humanos.
(4) VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Exposição do preso à mídia. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, set. 2008, p. 8.
(5) A sociedade e a cultura do medo são retratos de uma forma de dominação política que só é possível graças ao pavor social em relação ao crime, que é posto como problema social emergente, e da ideia de inadequação das políticas públicas relacionadas à questão. A respeito do assunto: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, passim.
(6) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 361.
(7) PASTANA, Débora Regina. Cultura do Medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003.
(8) O principal problema enfrentado pelo sistema prisional do Brasil é a superpopulação: há presos que têm que ficar de pé porque não há espaço para se sentarem no chão. Há, ainda, problemas relacionados à higiene e à alimentação. Sem falar na demora na solução dos processos e o elevado número de presos provisórios.
Érica Akie Hashimoto
Estudante do 4º ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Estudante do 4º ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
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